terça-feira, 26 de novembro de 2013
Almanaque Steampunk 2013
Joana Lima, Sofia Romualdo, André Nóbrega (ed.) (2013). Almanaque Steampunk. Porto: Clockwork Portugal.
Homenagem retrofuturista a um passado tecnológico que nunca aconteceu, o Almanaque Steampunk recupera o espírito dos antigos almanaques anuais que misturando factos, conselhos, calendários e artigos eram uma edição omnipresente durante a primeira metade do século XX em portugal. Este, fiel ao género steampunk, replica o estilismo dos velhos almanaques com conteúdos inspirados na estética dos passados ucrónicos a vapor.
Arranca com uma deliciosa secção de efemérides onde o destaque às convenções é polvilhado com toques de imaginário visceral por Joana Lima. André Nóbrega assina os divertidos horóscopos. Carlos Silva e Sofia Romualdo fazem dois lados de uma mesma moeda, o primeiro com uma fictícia carta de um conservador ferrenho que se pronuncia contra os horrendos modernismos e a resposta certeira do seu alvo, mulher libertária. Nestas duas vertentes encarnam bem as dicotomias sociais do século XIX, onde as mudanças que moldaram o século XX germinaram. João Ventura assina um relato em modo private joke sobre a convenção Eurosteampunk 2013, Cláudia Sérgio mimetiza moralismos do ideário da dona de casa ideal na divertida secção de dicas. Raquel da Cal encerra a secção de artigos com conselhos para um mundo onde o óleo, as engrenagens e o vapor se misturam.
Seguem-se entrevistas a Phil e Kaja Foglio, autores e editores da premiada série Girl Genious, e Dirk Müller, realizador de Airlords of Airia.
A novidade deste almanaque é uma curta banda desenhada de inspiração steam. Rui Alex escreve com bom humor garrido, mas a deixar vontade de ler um esforço narrativo mais sério, onde a caricatura seja deixada para trás e se centre na criação de um mundo ficcional mais complexo. É ilustrada num grafismo prometedor por Rui Leite. Nota-se que há aqui muito caminho a trilhar; a BD em si promete mas tem o seu quê de verde. Assinalando a incipiência do esforço, confesso que gostaria de ver a evolução destes autores nos estilos gráfico e narrativo noutras bandas desenhadas dentro do género.
A secção de contos reserva-nos boas surpresas. Inicia com o curto mas belo Onde as Ruas São Vazias de Diana Sousa, cuja sensibilidade clockpunk me fez recordar The Artist of the Beautiful de Nathaniel Hawthorne. Segue-se Antília, A Cidade Subaquática Portuguesa, um interessante exercício de worlbuilding que fascina pela riqueza do imaginário e sentido de descoberta e aventura por Joel Puga. Estes elementos de aventura com sabor steampunk também caracterizam Homo Machinae de Marco Trigo, conto ambicioso mas ao qual falta alguma clareza narrativa. Sílvio do Ó assina uma intrigante ucronia que me pareceu inspirada no processo dos Távoras, desta vez no quadro de um império ibérico e da luta contra rebeldes republicanos, terminando numa intrigante reviravolta narrativa. O Encantador de Bombas de João Barreiros encerra o almanaque na habitual boa forma daquele que é justamente celebrado como um dos maiores nomes da ficção científica portuguesa. Barreiros assenta mais um tijolo no edifício de um universo ficcional que ganhou expressão na colectânea Lisboa no Ano 2000. Foge à tonalidade steampunk com uma premissa irreverente sobre bombas canoras activadas pela recusa em ouvi-las e um rapaz que se descobre capaz de, numa referência a The Matrix, intuir e interferir psiquicamente com o código e circuitos das bombas. A voz catastrófica de Barreiros disfarça bem a irreverência de um conto cujo conteúdo remete para uma obra da literatura mainstream, adaptada ao cinema com um título que mistura cavalos e sussurros.
Só me resta dizer que para o ano espero mais. Sabendo como estas iniciativas dependem de esforços individuais nem sempre fáceis no contexto contemporâneo, espero poder ler um Almanaque de 2014 e que continue bem tão bem concebido, ilustrado e escrito como os que o precederam. Novamente, a Clockwork Portugal está de parabéns pela iniciativa e dinamismo.