terça-feira, 3 de julho de 2012

The New Yorker Science Fiction Issue (II)



A capa diz tudo, com a invasão colorida dos monstros, rayguns e robots da acastanhada normalidade erudita. Daniel Clowes dá o mote, mas a verdadeira invasão não é tão intensa como prometido. A ficção está mais numa veia literária de um fantástico borgesiano, apesar de lidar com drone aesthetics (The Republic of Empathy de Sam Lipsyte), agentes secretos cibernéticos em formato twitter (Black Box por Jennifer Egan), zombies (Monstro de Junot Díaz) e a personalização da internet (My Internet pelo veterano de ficção da revista que é Jonatham Lethem).

O sumo está na não-ficção, colunas e artigos de opinião, onde a prata da casa e escritores de renome se revezam para nos falar dos lados pessoais do género. Parece ter sido esse o tom adoptado pela revista: ficção científica como algo de simultaneamente nostálgico e futurista.

Take Me Home: Ray Bradbury, mestre do futurismo nostálgico, mistura FC e recordações pessoais sublinhando o carácter intimista das suas ficções e visões de futuro alicerçadas num passado dourado de infância.
The Clockwork Condition: ensaio onde Anthony Burgess revisita a sua obra icónica, interligando os males ficcionais com a asfixia intelectual de uma sociedade mediatizada onde os medos são aproveitados, crimes vistos como justificados à luz de pretensas guerras e, essencialmente, conceitos como bem e mal são nebulosos.
The Golden Age: Ursula K. LeGuin olha para a FC como um clube sexista, onde as raparigas que começaram a entrar foram alvo de olhares críticos, disparando tiros sobre a segurança dos ghettos culturais e o género enquanto coisa masculina.
Forward Thinking: China Miéville destrói barreiras, mostrando como um autor de literatura fantástica vai buscar inspiração às mais variadas raízes literárias, com uma pergunta pertinente: não é como não se deixa de fantasias, mas sim porque é que se deixa?
The Spider Woman: Margaret Atwood faz uma elegia de algo cada vez mais raro na era das educações estruturadas - a liberdade de ler sem estrutura, encontrar livros intrigantes em bibliotecas bem fornecidas onde ninguém diz ao leitor "olhe, isso não é para a sua idade", ou "deixe lá de parte esse livro e tome lá este que é literatura séria".
A Psychotronic Childhood: Colson Whitehead fala-nos de algo que quem cresceu nos anos oitenta e noventa conhece bem: o gosto pelos maus filmes, alugados à socapa em VHS, onde a incredulidade dos argumentos e a inenarrabilidade das obras colidem com o gosto pela procura de algo que está fora dos padrões de normalidade.
Quests: Karen Russel pega em recordações de incentivos à leitura na infância para sublinhar a importância da liberdade do leitor ler o que entender, e não o que socialmente se convencionou como importante. Este conceito de liberdade é um padrão para os apaixonados das literaturas de género.
Rocket 88: novamente, revisitas nostálgicas ao passado, desta vez pela pena de William Gibson que confessa que a sua paixão por FC vem dos detritos pop-culturais. Pára-choques cromados, rayguns de brincar ou visões de Chesley Bonestell. E depois vem a literatura.
The Cosmic Menagerie: Laura Miller traz-nos algo de banal para os conhecedores do género mas possivelmente novidade para o público habitual da New Yorker com uma génese da iconografia do  alienígena alicerçada na história da ciência e no trabalho de um obscuro escritor francês de literatura fantástica, contemporâneo de Verne.
Fantastic Voyage: Emily Nussbaum utiliza o caso paradigmático da série televisiva Doctor Who para sublinhar o carácter afectivo do género na televisão, que independentemente das audiências globais tem o poder de gerar pequenas legiões de ferrenhos e activos fãs.

Há que recordar que a New Yorker não se destina a fãs do género. É uma revista literária e de jornalismo de referência com um toque elitista. Este olhar para a ficção científica é quase didáctico, uma lição dada pelos praticantes aos que desconhecem o género, o que talvez explique o tom suave dos textos e o lado pouco radical da ficção. Pouco estrondosa para os fãs conhecedores do género, mas talvez o tenha sido para quem não está habituado a ver o monóculo vagamente snob de Eustace Tilley a contemplar coisas arrepiantes às voltas com foguetões ou futuros imaginários.