(Aviso à navegação: boring post com toque autobiográfico.)
Sempre que a televisão mostra imagens da mítica série infantil dos anos oitenta sou recordado do meu certo desvio à mediana. Todos referem o quanto gostavam da série e recordam-se de personagens e algumas das suas aventuras. Por mim, nunca gostei. Nunca lhe achei piada. A ideia de ficar uma hora a ver as aventuras sacarinas de miúdos e bicicletas numa mitificada cidadezinha costeira espanhola nunca me fascinou. Mas tenho boas memórias do Galactica e do Espaço 1999, por pueris que essas séries hoje me pareçam. Não sonhava com passeios de bicicleta por entre as serranias, mas combatia o tédio das viagens de metro transformando o bilhete num laser que na minha imaginação era igual ao do comandante Koening. Velhos tempos, aqueles em que para se viajar de metro se picava um rectângulo amarelo e não havia risco de ficar entalado no portal de entrada ou saída. Já me aconteceu. É doloroso.
Suponho que a culpa desta minha certa alienação é da minha saudosa vóvó, irmã da minha madrinha de baptismo e antiga preceptora que ensinou crianças de boas famílias em Lisboa e Paris antes de se reformar para levar uma vida dedicada aos livros, à religião e às memórias numa transversal da Avenida de Roma. Foi ela que me ensinou a ler, na pouco pedagógica idade de cinco anos, e me transmitiu o gosto pela leitura. Mergulhando em mundos construídos de palavras, que a minha imaginação transformava em imagens, cedo adquiri um gosto pelo que ultrapassa o banal e o normal. E um saudável desdém pelo lado mais acessível da cultura mediática de massas.
Ainda me recordo de aprender a ler, do fascínio de sentir que os símbolos no papel se transformavam em imagens na mente, com a cartilha maternal de João de Deus ao colo da minah vóvó na saleta de estar decorada com um certo gosto fin-de-siécle com um enorme armário cheio de livros. Fechado. Se ela era mais liberal, a minha madrinha tinha uma visão mais restrita do que seria pernicioso ou não para uma mente infantil. Pensava, por exemplo, que o Huckleberry Finn era uma má influência para a mente juvenil e foi uma luta para me deixar ler o Pinóquio. Estranhamente, dava-me liberdade para ler uns antigos romances de capa azul de Colette, os quais felizmente já esqueci.
É também por isto que sou um bocadinho desconfiado das iniciativas estilo Plano Nacional de Leitura, apesar de reconhecer o mérito dos professores que se dedicam a espalhar o o bichinho dos livros. Nem todas as crianças tiveram a sorte que eu tive, de ter alguém que no aconchego do lar tivesse paciência para ensinar as primeiras letras e o gosto pelas palavras. Isso e um certo anarquismo que desconfia saudavelmente de listas estatais de livros que representam o bom gosto. Não sou fã da ideia de que um ministério dite aquilo que devemos ler e não ler. Influências de 1984, Fahrenheit 451 e Admirável Mundo Novo.
Depois de me ensinar a ler a minha vóvó quis-me pôr a aprender francês. Aí falhou redondamente.