segunda-feira, 20 de outubro de 2025

As quatro mãos


00.  Uma última visita ao H145 que pousa regularmente em Santa Maria. Dias antes, estava a sair para o exterior enquanto aterrava, e fiquei surpreendido pelo pouco ruído que faz enquanto voa ou aterra.

01. Chego à enfermaria e sou saudado por sons da serrania. O pastor acordou, mal desperta chama as suas ovelhas. Este toque serrano no interior do hospital mais atarefado de Lisboa leva-me, inevitavelmente, a pensar em Torga. Tenho em mente que se quisermos realmente compreender o povo português de hoje, Aquilino e Torga são os mestres a seguir. Um deliciava-se nas contradições morais da burguesia, especialmente daquela que por ser pequena pouco afastada está do povo, no seu pratica o que digo e não o que faço, no ridículo de almejar voos mais altos que as elites portuguesas sempre lhes vedaram. O outro fala-nos da alma profunda do que hoje chamamos de país real, das gentes tisnada pelo sol, endurecidas pela pobreza, e cujo caráter, mesmo num país modernizado e urbanizado como o que vivemos hoje, ainda se sente entranhado. Ouvir o pastor chamar as ovelhas num oitavo andar de hospital faz-me pensar nos silêncios serranos que Torga descrevia. 

Entretanto, por puro acaso, durante a partida da minha mulher de Santa Maria para o hospital da sua zona, acabo por conhecer o pastor. É mais idoso e frágil do que imaginava, enfezado e quase afundado num cadeirão hospitalar. Fraco e impotente, apesar do seu vozeirão. No meu pensamento, desejo que continue a chamar as suas ovelhas.


02. "Hoje almocei bem", observa a minha mulher na voz entrecortada que indicia danos neurológicos às zonas cerebrais correspondentes. "Era carne com esparguete". Estaquei e fiquei a olhar para ela, preocupado. Espera, disse-lhe, a mulher que passa a vida a querer comer mais vegetais e a falar de vegetarianismo, a dizer-me que adorou uma refeição de carne? Os danos neurológicos são, temo, muito mais profundos do que se esperava.

Responde-me levantando o braço, cerrando o punho e colocando o dedo médio em riste na minha direção. Que bom, pensei. A motricidade fina está em franca recuperação.


03. "Doutor, podia chegar aqui", chama a paciente da cama em frente. Bem, não sou doutor, observo a sorrir, para lhe mostrar que não sou a pessoa com quem ela quer falar. "Se não é", responde numa voz elegante, pausada, "é porque não quer". Há alguma verdade nesta loucura, de facto, experimentar um doutoramento é daqueles projetos que vou adiando. A senhora que me chama está acamada e com os membros presos à cama, com alguns raros momentos de lucidez. Este, não foi um deles.

Ao longo dos dias em que acompanhei a minha mulher na enfermaria, assisti aos monólogos mais absurdistas, tão bizarros que são difíceis de imaginar. Recordo as vezes em que me confunde com a mãe da minha mulher, ou o impagável momento em que, numa voz de aparente perfeita lucidez, observa que tinha as mãos soltas, e o bom que era conseguir mover livremente as suas mãos. 

As suas quatro mãos.

Precisei de mobilizar o máximo do meu decoro e boa educação para não largar uma gargalhada.

Desta senhora, imobilizada e fragilizada num local que mal compreendia, recordo também os delírios que lhe ouvia sobre ir buscar documentos ou agendar momentos burocráticos com outras pessoas. O toque de loucura burocrática pareceu-me uma boa metáfora para aqueles que levam as regras e regulamentos para além do demasiado a sério.


04. "Vai-te embora", sussurra várias vezes a minha mulher durante as visitas. Encontra mil e uma razões para me expulsar. Diz-me que tenho dias compridos, fala-me de enfrentar a medonha escolha entre eixo Norte-Sul ou Calçada de Carriche em hora de ponta, quer que vá descansar porque trabalho muito e ainda passo tempo no hospital. Vou-a contrariando, e nisso o argumento do trânsito é o mais eficaz. Querer que saia dali por volta das 18 horas é mesmo condenar-me ao limbo do trânsito. Seguro-lhe a mão e insisto, só sairei dali perto do final do tempo máximo de visita. 

"Não quero que me vejas assim", acaba por confessar. Olho para ela, fraca, emaciada, com a enorme cicatriz na cabeça e cabelo rapado. Digo-lhe que não vou deixar de estar ao seu lado.

Pouco depois, levanto-me para arrumar e organizar algumas coisas nos seus pertences. Encher o copo com água fresca, preparar alguma fruta, arrumar os objetos soltos. Ouço logo um "não te vás já embora" suspirado. 


05. Confesso, com alguma gula, que um dos rituais que vou ter pena de deixar nestes dias de internamento é a ida à cafetaria Izzi do hospital. Obriga-me a um desvio, no labiríntico Santa Maria chegar ao departamento de neurologia é especialmente desafiante. Mas os pasteis de nata da cafeteria, sempre quentes e feitos na hora, fazem valer o desvio. Os passos extra nos corredores e escadarias ajudam a combater as calorias acumuladas.


06. Das vezes que a televisão da enfermaria estava acesa, reparei que os pacientes eram distraídos com aqueles programas dominicais de bailinhos da paróquia, ou as infindas discussões dos reality shows. Pareceu-me particularmente irónico que nas enfermarias de neurologia os pacientes tivessem de ver estes programas. Afinal, é um local para curar os neurónios, não para os danificar ainda mais.


07. Chego no sábado à central de acesso e descubro-me com cem pessoas à frente no acesso para visitas. Reflexos de uma greve de pessoal administrativo às horas extraordinárias, algo que compreendo e respeito. Ao fim de uma espera menos longa do que esperava, consigo chegar ao pé da minha mulher. Febril, por ter apanhado uma infeção, agitada, a pedir água. Mal a acalmo vem uma enfermeira ter conosco, dizendo-nos que irá ser transportada para outro hospital pelas 17:00. É uma boa notícia, já o esperávamos há vários dias, aguardando vaga no hospital da sua área de residência. Olho para o relógio, são 16:30. Felizmente, na visita de sexta já lhe tinha organizado todos os pertences.

No corredor, vejo os bombeiros chegar com a maca. A enfermeira de serviço expulsa-me, delicada mas firme, do quarto. Faz parte do protocolo, evita que os familiares atropelem os profissionais nos momentos mais agitados. Preparo-me para sair por onde entrei, mas os bombeiros pedem-me que os acompanhe. É assim que dou por mim a atravessar outros extensos corredores hospitalares, parando na zona da biblioteca para apanhar um último elevador que nos levará, a mim, à rua, a eles, à zona de estacionamento da sua ambulância.

Passar pela biblioteca de Santa Maria é um momento simpático para um bibliófilo.

À despedida da enfermaria, manifesto ao pessoal de enfermagem e assistência um profundo agradecimento, extensível a todos. Estas três semanas de acompanhamento em Santa Maria foram uma forte lição de humanismo, ao ver o desvelo e paciência com que os profissionais tratam os pacientes, a ir para lá do profissionalismo. 

Tentei apanhar a ambulância onde ia a minha mulher ao longo da autoestrada A8, mas não fui bem sucedido. Não estava especialmente preocupado, apenas pensei que seria um momento giro.

08. A luz exterior acinzenta-se, o fim de tarde está longo a noite aproxima-se. Internada no serviço de cirurgia do hospital das Caldas, a minha mulher sorri para a médica cirurgiã que a acompanha. Esta observa, confiante, que os danos foram mais leves do que o que poderia ser, sem perda de autonomia ou consciência. Os movimentos são difíceis, a voz ainda incerta, mas o prognóstico é bom. Ainda restam uns dias de internamento, para vigiar a interação entre medicação recorrente que tem de tomar, mas os dias mais angustiantes ficaram para trás. 

"Agora tira umas férias", diz-me a mãe dela. "Merecidas", reforça a irmã. De facto, em Caldas torna-se mais difícil um acompanhamento mais próximo, mas sei que está bem entregue. 

Olho pela janela do quarto e vejo um arvoredo, ainda verdejante apesar do acinzentar da luz do dia. A vista para a mata do caldense parque D. Carlos é agradável. Despeço-me da minha mulher, para dar tempo para a mãe e a irmã a visitarem. Saio do quarto, olho à minha volta, e apercebo-me que estou completamente perdido. Entrei via urgências acompanhando os bombeiros, e agora não faço a mínima ideia de como sair. O enfermeiro, a sorrir, acompanha-me escada abaixo para me dar a conhecer o hospital.