Moudhy Al-Rashid (2025). A Mesopotâmia Antiga e o Nascimento da História. Lisboa: Bertrand Editora.
Confesso um fascínio crescente com esta antiga civilização, vinda dos primórdios da história. Talvez pelo seu elevado nível de alfabetismo. O legado da antiga Suméria faz-se de muito mais do que vestígios arqueológicos e antigos monumentos, restam-nos quantidades vastas das tabuinhas de argila inscritas com os seus antigos caracteres em forma de cunhas. Essas tabuinhas são fascinantes, preservam não as memórias institucionais e religiosas, a forma como os poderosos gostam de se preservar para a posteridade, mas a vida comum, a textura de uma sociedade e da vida das pessoas.
Parte destas tabuinhas preserva a literatura, de índole religiosa, e através da sua decifração percebemos o quanto a antiga Suméria faz parte do nosso adn cultural. As suas lendas e histórias, mesmo após o esquecimento da civilização, foram incorporadas no corpus mítico que molda textos mitológicos como a bíblia. Ler o Épico de Gilgamesh é redescobrir textos esquecidos que ficaram preservados na memória, entre a busca pela imortalidade ou o mito do dilúvio. Também devemos aos sumérios as bases da matemática e astronomia.
São ideias que perduram na mente após a leitura deste muito interessante livro. A autora abandona o estilo necessariamente seco da escrita académica e faz despertar no leitor imagens vívidas das antigas Suméria e Assíria. A história constrói-se através da análise de um achado de artefactos, e só esse preâmbulo já impressiona. Fala-nos dos vestígios do palácio da última sacerdotisa da deusa tutelar da Babilónia (sabemo-lo porque o seu pai foi o último rei da cidade, antes desta ser absorvida pelos Persas), onde foi encontrado algo que foi interpretado como um antigo museu, preservando artefactos e a memória de povos que já eram milenares nesses tempos antigos.
Parte de artefactos, mas esta não é uma história de objetos, reis e sacerdotes. É uma história de profundo humanismo, que se foca no tentar recriar do que era viver naqueles tempos. É a vida, não só a das classes superiores, mas também a vida das pessoas comuns. Nisso, o legado literário sumério é um instrumento fundamental. Faz-se de ima miríade de documentos perfeitamente banais. Cartas pessoais, recibos, reclamações, registos. Através do tédio da burocracia emerge o retrato pulsante de um povo.
Como professor, fiquei particularmente intrigado pelo corpus de registos eduba - textos sobre a escola suméria e assíria, onde os futuros escribas entravam em criança para aprender as regras da escrita suméria (um pormenor, que mostra a importância história da antiga civilização, tem a ver com o perdurar da língua suméria após a absorção desta civilização pela Assíria, como língua erudita e de registo). São textos que nos mostram que há coisas que nunca mudam, os excertos partilhados pela autora mostram que as ânsias e ansiedades dos professores e estudantes eram, há mais de três mil anos, os mesmos de hoje. Algo que é tocante.
Mais do que uma história, esta é uma obra humanista que nos recorda o quer a humanidade naquela época. Recorda-nos, também, o quanto perdura a memória destas civilizações que, até ao século XIX, estavam esquecidas sobre as areias do médio oriente.