Manuel Gomes (1977). Almanaque Fantástico Cómico Científico. Lisboa: Arcádia.
Confesso, gosto de alfarrabistas de rua e não perco oportunidade de visitar feiras da ladra, mercados de velharias ou ajuntamentos similares. Há um certo prazer estético, entre o decadente e nostalgia, no meio de tanto objeto que se está a afastar do conceito de antiguidade para o de tralha. Quanto aos livros, adoro os acasos com que me deparo nestas situações. Não sou daqueles que se ajouja de tomos com aspeto antigo, acumula em nome de coleções, ou busca raridades editoriais. Procuro o extraordinário, o anormal, o surpreendente, livros algo excêntricos. De certa forma, um pouco livros raros, não pela escassez física mas pelo inesperado do seu conteúdo.
Este, apanhei-o à beira da estrada em Óbidos, terra que se tornou uma disneylândia luso-medievalista com chocolate aos copos na ginja, frequentada por hordes de turistas que vão tirar fotos às livrarias do Mercado e Santiago. Ambos os espaços já me granjearam boas descobertas literárias, embora a que fica albergada numa antiga igreja não seja santuário dedicado às velharias bibliográficas. A estratégia turistificante obidense dispara em múltiplas frentes, e o seu objetivo de ser uma espécie de Hay-on-Wye do Oeste torna-a um espaço que alberga várias livrarias, contrastando com a penúria cultural das Caldas, cidade logo ali ao lado. Penúria é termo injurioso, claro. A cultura caldense é vibrante e faz-se da herança ceramista, das experiências artísticas e da música independente. E conta com duas livrarias, a contrastar com a mais de meia dúzia da vila ao lado.
Tanta conversa para chegar a este destino: um livro apanhado à beira da estrada, vendido por um interessante e bom conhecedor de livros alfarrabista da zona oeste. Quando me cruzo com ele, sei que tem uma banca com edições interessantes, bastante caras (é normal ter primeiras edições em excelente estado de preservação de livros e autores muito importantes). Infelizmente para a conta bancária dele, mas felizmente para a minha, a bibliofilia que me acomete não se alimenta de primeiras edições ou livros de prestígio. Já se a obra for inesperada, bizarra ou fora da caixa, abrir os cordões à bolsa é ato mais do que certo.
Seduziu-me esta curiosa antologia literária, que repesca o formato de almanaque de uma forma erudita. Editada em 1977, celebra esse ano com um misto de efemérides, curiosidades, sabedoria popular, bizarrias noticiosas e textos inesperados. Celebra, acima de tudo, a antiga tradição do almanque enquanto meio de comunicação informativo e recolha de saberes.
Por entre os provérbios populares, a indicação dos santos do dia (sujeita a criteriosa escolha, certamente, dado que a multidão do panteão católico excede largamente os parcos trezentos e sessenta e cinco dias do ano), efemérides que num livro por cá editado em 1977 celebram particularmente as personalidades vermelhas sem esquecer o bafiento estado novo, encontramos uma seleção erudita de textos inesperados.
O Fantástico, com recortes de comédia e uma assumida aspiração pseudo-científica (faz sentido, no domínio ficcional), é o tema da recolha. O sabor antológico é francófono, com Poe e Jerome K Jerome (por irona, com um conto sobre robots, de ficção cientifica cómica) a descompor um ramalhete que inclui Brillat-Savarin, Brantôme, de Nerval ou Jarry. Há aparições pontuais de Camilo Castelo Branco e Teófilo Braga. O livro também serve de mostruário da editora, os contos e excertos que recolhe foram publicados em português nas coleções da Arcádia.
Este não é um livro para se ler com seriedade. Aconselha-se a leitura pontual, saboreando a mescla de ideias, aproveitando o deleite literário que nos leva da sabedoria popular aos autores franceses malditos. Vénia ao passado literário, boa surpresa, e bem vinda adição à minha biblioteca.