quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Peter Pank


Max Bardin (2011). Peter Pank. Barcelona: La Cúpola.

Fãs portigueses de banda desenhada já com alguma idade recordam-se de uma época onde abundava BD nas bancas e quiosques, mercê da importação brasileira da Abril. Foram os tempos dos lendários formatinhos, que nos traziam os comics da Marvel e DC, as aventuras dos personagens Disney, e muitos outros personagens. Também cá chegavam graphic novels (em revista, não em livro), séries limitadas editadas no formato comic. e outras revistas de BD. No meio disso tudo, havia um fenómeno estranho, que se hoje estivesse acessível a todos em bancas, provocaria pânicos morais: a revista Animal.

Independente e a puxar para o underground, era uma revista que nos trazia do melhor da BD europeia e brasileira. Não a comercial, mas sim a independente e de vanguarda. Para além de geniais cartoonistas brasileiros, foi naquelas páginas que descobri Mattoti, Schulteiss, Magnus ou os irmãos Hernandez, entre outros nomes do vibrante panorama da BD independente dos anos 80 e 90. E também se poderiam descobrir outras coisas. A Animal estava pensada para adultos, e tinha algumas rubricas dedicadas a gostos mais perversos e peculiares. Nos dias de hoje, em que o dilúvio online nos baixou o nível de sensibilidade por excesso de exposição a excessos, revistas como a Animal parecem-nos quase ingénuas. Mas, à época, foi uma pedrada no charco, que mostrava que a BD de qualidade ia além dos formatos comerciais ou do tedioso prestígio da bande dessinée francesa. Podia ser radical, virulenta, escatológica, sem compromissos, e em essência, interessante.

Há um trio de personagens da BD underground europeia (quatro, se incluirmos Cowboy Henk) que eram peculiarmente radicais e tinham presença garantida nas suas páginas: as aventuras sexualidadas do robot Ranxerox e a sua namorada adolescente (este lado não envelheceu bem) por Liberatore, o colapso sangrento da cultura pop no absolutamente brilhante Squeak the Mouse de Mattolli, e a destruição punk da parábola delicodoce de JM Barrie em Peter Pank do espanhol Max Bardin. 

Bardin pegou no esqueleto de Peter Pan e recriou-o numa perspetiva da rebeldia das culturas undeground dos anos 80. A terra do nunca transforma-se numa Terra dos Punks, e os rapazes perdidos num bando de agarrados à cola e heroína. Os piratas tornam-se rockers ao estilo dos anos 50, com o enorme topete do capitão. As sereias são  insaciáveis ninfomaníacas, e a ilha ainda alberga uma comunidade hippie, malta pacífica exceto quando toma ácido.  No meio disto tudo reina Peter Pank, um cabrão assumido, punk até à medula, que não olha a nada para satisfazer os seus prazeres. Se na fábula de Barrie Wendy e os seus irmãos visitam a Terra do Nunca a convite do eterno rapaz, nesta versão os objetivos de Peter são muito mais lúbricos em relação à jovem. E, claro, não poderia faltar a caricatura da fada, no fundo uma das grandes heroínas deste delírio.

Com uma base destas, só poderia dar confusão da grossa, e sucedem-se peripécias de humor corrosivo e implacável. Terminadas as aventuras na terra dos Punks, Max Bardin ainda nos legou outras duas aventuras do seu tramado anti-herói: um delírio onde a iconografia do horror clássico colide com os romances de espionagem e as culturas urbanas violentas; e uma aventura final, um hino à rebeldia onde Peter Pank lidera uma guerrilha que libertará a ilha do jugo dos yuppies (ainda se lembram desta tribo urbana, imortalizada por Olvier Stone em Wall Street e Brett Easton Ellis em American Psycho? Hoje designamo-os por neoliberais). 

Todo o livro é desenhado num traço acutilante e rigoroso, com um esquema de cores fortíssimo. Esta edição da La Cupola recorda um personagem incómodo, e um marco incontornável da iconoclastia underground da BD europeia dos anos 80.