Sayaka Murata (2020). Earthlings. Londres: Granta.
É raro encontrar um livro que seja tão cruel com os seus personagens, e também com os leitores. Earthlings é uma daquelas obras-surpresa, que aparentam uma banalidade inicial mas explodem de forma chocante. Não é um livro que nos deixe indiferente ao terminar a leitura.
As primeiras páginas do livro parecem saídas de uma light novel japonesa dedicada ao público juvenil. É aí que ficamos a conhecer Natsuki, uma criança que vive intensas fantasias. Crê-se capaz de poderes mágicos, e de comunicar com criaturas alienígenas, que lhe confidenciam que ela própria é uma alienígena, e está na Terra em missão. A jovem acredita que, na sua família, apenas um dos seus primos é capaz de a compreender, e os dois fazem um pacto de amor. Se isto vos parece argumento de mangá delicodoce, depressa se desenganam ao perceber que Natsuki está a ser vítima de abusos sexuais. Um dos seus professores, jovem universitário adorado pelos alunos da escola onde dá aulas, aproveita-se da inocência e estranheza da rapariga. Depressa percebemos que o mundo de fantasia da criança é um misto de inocência com sublimação de trauma, o que irá ter graves consequências para a união da sua família.
Anos destes acontecimentos trágicos, Natsuki é uma jovem adulta a viver uma falsa vida. Casou por conveniência com um homem para quem, tal como ela, é impossível viver uma vida dentro dos padrões da normalidade. O casamento serve apenas para enganar as suas famílias, dado que a pressão para ter uma vida dita normal, casar, ter filhos, manter-se nas estritas convenções sociais, é enorme. Ele, cujo trauma o impede de ter qualquer intimidade, depressa é contaminado pela fantasia negra de Natsuki. Ambos acreditam serem alienígenas, encalhados num planeta dominado por um sistema que instrumentaliza os humanos para a sua auto-preservação. Algo a que chamam a fábrica, onde as pessoas são instrumentos de reprodução através da natalidade.
Um período em que ambos estão sem trabalho e visitam a terra de origem da família de Natsuki vai despoletar um final catastrófico. Dá-se o reencontro com o primo, após um afastamento de décadas, e os três embrenham-se de tal forma na fantasia negra que se isolam da sociedade e rejeitam os ditames sociais, vivendo numa casa em ruínas. Perante o isolamento de um inverno nas montanhas, têm de recorrer a meios drásticos de sobrevivência, e acabam por recorrer a canibalismo e autofagia. Tudo descamba de forma muito lógica, porque afinal, tudo o que nos choca são meras inadequações para quem se sente alienígena.
Apesar do início light novel e do final perfeitamente gore, Earthlings é um romance sobre o trauma profundo. É narrado sob o ponto de vista da protagonista, de uma forma arrepiante, usando a falta de sentimento como estratégia narrativa para sublinhar a completa quebra desta com a sua família e sociedade. Revela-nos o mundo visto por alguém profundamente traumatizado que sublimou os traumas construindo uma lógica de fantasia. Esse é um dos pontos mais arrepiantes do livro, a forma como nos apresenta o anormal como profundamente lógico e natural. Por outro lado, é visível que todos aqueles que se cruzam com a vida desta desditosa personagem estão mais focados em preservar normas sociais do que em compreender que a pessoa que dizem amar e proteger está profundamente danificada, e precisa de ajuda e compreensão, não de repressão e condescendência. Isso depressa se torna claro mal a personagem, ainda criança, tenta falar sobre os abusos sexuais que sofre, esbarrando com a descrença da mãe e, num ainda mais sinistro ponto de vista, com os ciúmes das outras jovens, que desejam a atenção de alguém que não acreditam ser abusador.
Esta surpresa literária é um inquietante estudo psicológico sobre traumas, repressão da vida numa sociedade conservadora. Tenta mostrar-nos a forma como alguém que é incapaz de pensar como aquilo que é considerado a normalidade vê o mundo, como o que nos parece perverso e assustador pode ser friamente lógico.