Wu Ming (2018). Proletkult. Barcelona: Anagrama.
Este livro curioso faz-nos regressar às utopias do futuro progressista e revolucionário comunista. Invoca as estéticas da ficção científica soviética, com o seu sonho de espalhar a igualdade e o progresso pelas estrelas (claro que, como bem sabemos, por detrás destes ideais estava um estado repressivo em tudo igual a outros tipos de regime totalitário). A invocação é feita de forma delicada. Apesar de ser a essência do livro, estas ideias estão num esparso polvilhar, porque a estrutura narrativa leva-nos à amargura daqueles que estão a ver os seus ideais de liberdade esmagados pela ortodoxia sedenta de poder.
É talvez esse o lado frustrante do livro, promete ser um devaneio algo ucrónico sobre comunismos, utopias e alienígenas, mas mantém-se na análise da progressiva opressão. Nisto das ucronias o livro até é prometedor, com um arranque em que ficamos com a suspeita de que o homem que viria a tornar-se Estaline é na verdade um alienígena. Mas os autores não seguem esse caminho, embora regressem no final do livro, fechando o círculo.
Quando uma rapariga sem identidade e possuindo como dinheiro velhas notas do tempo dos czares é ajudada por um casal de camponeses, somos levados a uma potencial história mirabolante. A rapariga chega a Moscovo em busca do seu pai, e tem como único contacto um médico que foi seu amigo. Médico esse que é um revolucionário caído em desgraça, por se ter incompatibilizado com Lenine nos tempos pré-revolucionários, e agora ainda mais em perigo numa União Soviética que apregoa a liberdade mas pratica a unicidade ideológica. Um médico que estuda as transfusões sanguíneas, agora reduzido ao papel de humilde investigador depois de um passado como intelectual revolucionário influente, instigador da iniciativa Proletkult, que visava trazer a cultura ao operariado e campesinato, como forma de elevar o seu espírito. Uma iniciativa considerada perigosa nos tempos em que a revolução se está a consolidar no estado soviético, onde a dissidência intelectual é punida com o ostracismo e a morte.
Este médico tem no seu passado algo peculiar, um livro de ficção científica que relata a viagem de um russo a Marte, onde descobre uma sociedade avançada que é, naturalmente, comunista. Uma utopia que celebra o melhor dos ideais revolucionários, em direta oposição a Aelita, esse outro clássico da FC soviética que representa o oposto, com a sociedade marciana a render-se à revolução graças à influência de dois revolucionários russos. Grande parte da história de Proletkult inspira-se em personagens reais, romanceando as lutas ideológicas e a amargura dos revolucionários que perdem, progressivamente, as ilusões.
O extraordinário surge pela mão da misteriosa rapariga, que reclama ser a filha do protagonista do romance, nascida num planeta alienígena e que vem em missão à Terra. A sua sociedade progressista enfrenta um problema de falta de recursos, e os seus líderes falam abertamente da expansão para a Terra, exterminando a humanidade por a considerarem inferior e ainda longe do ideal social. Como meio-humana, meio alienígena, a rapariga quer convencer os seus conterrâneos que se os terrestres são menos desenvolvidos, encontram-se no caminho certo graças à revolução soviética. Mas a missão corre mal, com a nave a despenhar-se, e resta à rapariga tentar encontrar o pai, através do seu amigo médico e escritor. Este, surpreendido pelos relatos da jovem, não sabe muito bem o que pensar. Por um lado, tudo aponta para uma alucinação onde o seu livro é considerado real. Por outro, a jovem revela-lhe pormenores que só ele sabe e nunca foram publicados. Como, por exemplo, na sua história o planeta não ser Marte, e ter outro nome. O mistério adensa-se quando analisa o sangue da jovem e encontra células que nunca viu no sangue humano.
Apesar dos elementos de fantástico, a grande história de Proletkult é a da desilusão com a revolução, contada pelo recriar das experiências de uma personalidade real. Toda a história da alienígena vinda de una sociedade avançada, culminar da utopia comunista (embora, como se mostra pelas atitudes perante outras civilizações e o esgotamento iminente dos seus recursos, não seja tão perfeita como se anuncia), apesar de servir de espinha dorsal do livro, acaba por ser algo de acessório. Se defrauda neste aspeto, não deixa de ser uma viagem entre visões críticas e nostálgicas dos tempos revolucionários. Como pormenor adicional, este livro que li em tradução castelhana foi escrito por um coletivo de autores italianos, que assina com o pseudónimo Wu Ming (ou seja, anónimos) e procura explorar a narrativa entre o fantástico e o experimental.