quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Visões


A Touch of Evil: Vi o fantástico opening shot deste filme de Orson Welles numa sessão de formação do Plano Nacional de Cinema e comecei a espancar-me com facepalms mentais. Como é que ainda não tinha visto este filme? Afinal, Orson Welles é uma das personalidades que admiro. Citizen Kane é um filme que nunca me canso de rever, e para o lado de amante de ficção científica há que recordar que a sua adaptação para teatro radiofónico da Guerra dos Mundos de Wells ainda hoje mexe com quem a ouve. Para a história, quer do género quer dos media, fica o histerismo provocado pelo impacto das técnicas inovadoras de Welles nos ouvidos de um público incauto.

Sem querer cair em lugares comuns, é óbvio dizer que Welles foi um visionário do cinema, Citizen Kane impressiona mais pela estética do que pela história. É um filme onde todo o visual está ao serviço da narrativa, criando um todo coerente que mergulha o espectador na história. A Touch of Evil vai ainda mais longe. Assenta num dinamismo extraordinário de cenas onde nada é estático, sucedem-se os enquadramentos em ângulos cortantes, incómodos para o espectador, o trabalho com reflexos e profundidade de campo é excelso, os raccords são perfeitos a interligar diferentes momentos narrativos. Assinalaria ainda a omnipresença do movimento automóvel, quer como presença constante quer como ponto de vista da câmara. A estética em preto e branco de forte geometria, quase abstracta no equilibrio de massas na imagem. Este filme é uma experiência estética espantosa. Parte de uma convoluta história de policial noir cheia de reviravoltas e surpresas, onde nada é o que parece. Uma história policial que nas mãos de outro realizador seria banal, igual a tantas outras, mas nas mãos de Welles se torna magistral. Apanhei a versão editada de acordo com as instruções do realizador. São bem conhecidas as tropelias dele perante o comercialismo impiedoso do studio system. E tem uma cena que não fica nada atrás dos melhores filmes de terror. Quando o rosto de olhos esbugalhados raiados de sangue do gangster estrangulado pelo polícia corrupto se abate sobre o olhar da mulher raptada que acorda drogada na cama de um hotel seboso, é o mais clássico dos enquadramentos de horror. E o mais eficaz.


Coisa Ruim: Se, como eu, ficaram curiosos por ver pequenos excertos deste filme de terror português ficarão com a sensação que o filme é melhor do que o que realmente é. Assistir à conversa com realizador e argumentista, completa com intrigantes excertos, no último encontro Sustos às Sextas despertou-me a curiosidade para algo que já de si é raro, um filme assumidamente de terror português. O que fica do visionamento é, de facto, uma boa história de fantasmas e maldições com imensa atenção à tradição portuguesa. Nisto o filme é eficaz, levando-nos ao Portugal rural e profundo, com tradições obscuras e mistérios centenários que colidem com o racionalismo contemporâneo. E poderia ser um bom filme se os realizadores não estivessem tão enamorados do slow travelling dentro de espaços claustrofóbicos para tentar criar suspense. Aquilo é tanta câmara em movimento de aproximação lenta que o efeito acaba por ser mais de provocar bocejos do que intrigar o espectador. Junta-se a isso uma estranha falta de coerência narrativa no encadear de uma linha narrativa feita de cenas sucessivas, algo previsíveis, mas estranhamente desconexas. A intensidade emocional de um filme que se quer assumir como provocador de emoções fortes  também não é algo que se note. Há poucos momentos em que realmente se sente que os actores encarnaram os personagens que representam. Coisa Ruim não deixa de ser um esforço interessante, quer pela temática quer pela forma como a aborda. A filmografia de género por cá é rara e mal vista, porque, enfim, todos os filmes (e livros) têm de ser sobre coisas muito sérias e importantes porque o que é preciso é que sejamos todos sérios e importantes e pensemos em coisas sérias e importantes, deixando as infantilidades de outros imaginários ou para as crianças ou para o domínio daqueles maluquinhos que se vestem demasiado de preto ou passam demasiado tempo a sonhar com naves espaciais. Coisa Ruim é um filme normal de terror leve, perfeitamente banal no panorama cinematográfico global, mas por cá interessante por inerência da raridade do artefacto.


The Babadook: Don't get scared, it's just a book. Ou será? Uma belíssima e arrepiante surpresa, num filme muito ambíguo que tanto pode ser a descida à locura de uma mãe viúva, incapaz de ultrapassar a depressão pela morte do marido e com um filho complicado nos braços, ou ser mesmo um monstro que se aproveita das fraquezas humanas. A ambiguidade é deliciosa, assente num espantoso trabalho de interpretação da actriz Essie Davies. O seu olhar e prostura corporal transmitem na perfeição aquela sensação de se estar a revalar para um abismo apesar de todos os esforços para nos mantermos à tona. Filme com momentos genuinamente arrepiantes, apesar de se situar naqueles padrões clássicos do horror psicológico dentro de casas tenebrosoas com criaturas ameaçadoras do além. Tem uma estética curiosa, feita de enquadramentos estáticos e um cinzentismo intencional que sublinha o horror da banalidade e normalidade em conflito com o resvalar da loucura. E o livro é um extraordinário pop up from hell.