quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Twelve Tomorrows


Neal Stephenson (ed.) (2013). Twelve Tomorrows. Cambridge: MIT Technology Review.

A tradição de conceber a Ficção Científica enquanto oráculo preditivo de tecnologias e tendências sociais é já longa. Este Twelve Tomorrows assume-se como um transpor do que é publicado nas páginas da Technology Review, utilizando a ficção como forma de imaginar os possíveis impactos das tecnologias contemporâneas de ponta. Editado por Neal Stephenson, olha para as biotecnologias, pervasividade digital, exploração espacial, nanotecnologia e supercondutividade em contos que não se ficam pela visão clássica da FC alicerçada num objecto ou tecnologia mas que imaginam ou analisam contextos sociais reais ou imaginários. O editor também nos lega uma longa e pouco pertinente entrevista que se centra mais no seu sucesso pessoal do que nos temas possíveis da antologia.

Há aqui premissas brilhantes. David Brin mostra-nos a invisibilidade de um panopticon digital assente na realidade aumentada. Ian McDonald desmonta as revoluções populares ao estilo da primavera árabe ou euromaidan sob a luz da internet das coisas, reflectindo a invasão do Iraque e os desmandos do sistema financeiro global. Allen Steele insinua uma visão grandiosa mas realista da exploração de recursos naturais no sistema solar. Estes são os pontos mais altos da antologia, mas os restantes contos são também peças interessantes de especulação informada que nos levam a pensar sobre impactos das tecnologias de vanguarda.

Esta é a edição de 2013, e a Technology Review já prepara a saída da edição de 2014. Esta promete, com Bruce Sterling a alinhar William Gibson, Pat Cadigan, Cory Doctorow, Lauren Beukes e Warren Ellis. É difícil imaginar um grupo melhor de super-estrelas da FC contemporânea. Olhando para os autores e para o editor, suspeito que a mais recente Twelve Tomorrows se centre na hipermodernidade digital do mundo globalizado pós-Snowden com toques de favela chic e europop.

Insistence of Vision - O conto de David Brin imagina um futuro de realidade aumentada pervasiva acessível através de óculos digitais. E imagina uma curiosa forma de punição criminal num mundo de transparência informacional. Em vez de cumprir penas numa prisão, os condenados podem continuar em liberdade, sendo que a sua condenação está sempre visível na realidade aumentada. Continuam livres, mas num ambiente informacional pervasivo a punição funciona através de um ostracismos social completo.

The Mighty Mi Tok of Beijing - Brian W. Aldiss dá um contributo com o seu quê de patético neste conto sobre um cientista chinês transformaro em herói por uma humanidade grata. O seu contributo para a felicidade comum? Ter encontrado forma de canalizar as excreções humanas para o calcanhar, desviando-as da partilha de espaço com os orgãos sexuais.

In Sight - Cheryl Rydbom contribui um bem urdido conto sobre ciber-espionagem futurista, com um agente ao serviço de justiceiros a roubar a identidade de um milionário conhecido pela arrogância. Num futuro onde chips inseridos no corpo comportam toda a informação digital sobre a pessoa o processo de assalto assemelha-se ao de um franco-atirador que mantém a vítima na sua mira.

Transitional Forms - Paul McAuley aborda o que pode correr mal com vida artificial através deste conto, narrado sob o ponto de vista de um segurança de uma zona restrita no deserto americano. A zona é o habitat natural de organismos geneticamente modificados onde a combinação de evolução natural e interferências de bio-hackers leva ao constante surgir de novas mutações. Os interesses financeiros na exploração destes organismos são muitos, mas a ameaça da proliferação de organismos desconhecidos também.

Pathways - Um conto longo de Nancy Kress que nos remete para uma américa futura nas mãos de libertários. Num cenário de pobreza progressiva, desinvestimento na ciência e alastrar da desregulamentação selvagem uma rapariga de uma zona pobre do interior americano oferece-se como cobaia de cientistas chineses que buscam uma cura para uma doença neurodegenerativa rara. Dividida entre os receios de uma comunidade local inculta e os dilemas da experiência, a rapariga acaba por perceber que esta é a única forma de poupar a sua família a uma morte dolorosa e certa, acabando por despertar uma forte consciência interventiva. Uma curiosa mistura de distopia política com a premissa de tratamentos que alteram radicalmente a vida das cobaias, que deu a  Flowers to Algernon o impacto que ainda tem.

Set the Controls for the Heart of the Sun - Allen M. Steele utiliza os delírios de um culto que rouba uma nave e se atira para dentro do sol na esperança que os seres alienígenas em que acreditam os salvem para uma belíssima especulação sobre o futuro da humanidade no espaço, com colónias independentes em várias zonas do sistema solar, postos de mineração de recursos naturais em asteróides e atmosferas planetárias e as naves que os interligam à Terra, respeitadoras dos limites físicos a operar com motores atómicos ou velas solares impulsionadas por raios laser emitidos de uma estação no ponto de Lagrange entre a Terra e o Sol. A história do génio que na deriva da vida acaba por se meter com cultistas insanos é uma boa desculpa para o autor pintar um vasto e plausível panorama da exploração do sistema solar. A referência à canção psicadélica dos Pink Floyd é a cereja em cima do bolo.

The Revolution Will Not Be Refrigerated - Ian McDonald utiliza com muito bom humor o conceito de internet das coisas misturado com a realpolitik por detrás dos estados falhados onde ditadores entricheirados fazem de tudo para manterem o poder face aos protestos de rua. O conto leva-nos a um ficcional país do médio oriente, onde o petróleo vai mantendo no poder o típico déspota da zona, que está ameaçado pela combinação de classe média irritada e tecnologia de rede, traduzida no processo revolucionário de concentração em praças públicas potenciado pela internet. Este ditador tem a presença de espírito de desligar a rede antes de ordenar aos tanques que carreguem sobre os manifestantes, mas não contou com os escalões mais baixos da sociedade do país. Os habitantes responsáveis pela recolha de lixo nas cidades até um contrato forçado por imposições de credores externos ter entregue o serviço a uma empresa transnacional, sabiam aproveitar e reciclar com a máxima eficiência. Quando, no rescaldo da repressão, começam a reciclar electrodomésticos inteligentes acabam por ter nas mãos a matéria prima para criar uma rede flexível de internet, assente na míriade de frigoríficos com wifi, batedeiras capazes de fazer routing de tráfego e aparelhos com sensores que comunicam através da internet. McDonald consegue misturar a história recente com o mito das revoluções permitidas pela internet, a importância da conexão em rede nas sociedades e desconstrói a internet of things num ritmo de favela chic sob repressão autoritária.

The Cyborg and the Cemetery - Nancy Fulda aborda as próteses cibernéticas numa história onde um homem idoso se liberta das obrigações terrenas antes de se lançar num walkabout final pelos desertos australianos, como corolário de uma longa e bem sucedida vida. Não teme a morte, porque deixa para trás a Inteligência Artificial embebida na sua perna robótica, prótese que ao crescer com o seu utilizador acabou por ganhar consciência sintética.

Bootstrap - Kathleen Ann Goonan aborda o conceito de tecidos inteligentes com a história de um artista com patologias mentais que encontra uma camisa com nano-tecidos. Protótipo experimental perdido talvez de forma intencional pela DARPA, a camisa ao ser vestida inicia um processo de intensificação dos dotes do utilizador enquanto cura as maleitas psicológicas. Uma visão ingénua do conceito de tecidos inteligentes capazes de monitorizar sinais vitais e dispensar medicação aos seus utilizadores.

Zero for Conduct - Greg Egan também opta por um certo ar de favela chic, desta vez numa história onde uma brilhante refugiada afegã no Irão descobre uma solução para supercondução à temperatura ambiente. Orfã de pais que morreram às mãos dos talibans por acreditarem no direito das mulheres à educação, vive e estuda numa cidade iraniana, mas passa o tempo a experimentar combinações moleculares através de computação distribuída, como nos sites e aplicações, bem reais, que transformam em jogos de puzzle os complexos cálculos de química informática. Ao descobrir e sintetizar um composto que permite supercondutividade à temperatura ambiente mostra-se capaz de organizar a rede familiar para levar electricidade e acumuladores supercondutores para a zona remota do Afeganistão de onde provém. Inteligente, sabe que tem de ser triplamente cuidadosa: como refugiada num país que a discrimina, mulher educada no hostil país de origem, e inventora de uma tecnologia revolucionária que despertará a cobiça das grandes empresas de energia, capazes de tudo para lhe roubar a invenção se esta não for devidamente patenteada.

Pwnage - Justina Robson imagina um mundo onde as comunicações audio-visuais são internas e pervasivas, com a rede a unir e interligar dispositivos que fazem parte do corpo. A história é narrada por uma agente de segurança interna, cujo trabalho é analisar as tendências e discussões online em busca de elementos considerados dissidentes ou subversivos. Mostra como a privacidade se esvai numa sociedade panopticon.

Firebrand - Peter Watts desmonta o tretologuês que oculta os desmandos das grandes corporações neste conto onde a combustão humana espontânea se torna corriqueira. São apontadas causas mirabolantes ou culpados obscuros por uma epidemia de pessoas que sem razão aparente começam a arder. O real culpado é uma empresa de fabrico de biocombustíveis produzidos através da modificação do código genético de algas, que infiltram os ambientes naturais e acabam nos sistemas digestivos humanos com consequências incendiárias. Uma intrigante reflexão sobre os perigos da modificação genética de organismos sem supervisão e o spin mediático que ofusca deliberadamente factos reais.