quinta-feira, 17 de julho de 2014

Ficções

Cimmeria: From the Journal of Imaginary Anthropology: Que espantosa vénia esta de Theodora Goss a Jorge Luís Borges. Se no clássico Tlön, Uqbar e Orbis Tertius uma enciclopédia imaginária metamorfoseia a geografia real, Goss vai mais longe e imagina um grupo de antropólogos que investiga a possibilidade da meticulosa criação de um país imaginário se tornar realidade. Parece que funciona, com o grupo hospedado no país por eles criado, cujos habitantes são sensíveis à possibilidade de serem materializações de ficções académicas. We dream countries, and then those countries dream us, lê-se a meio do conto. E poderemos ser nós sonhos, ficções convencidas que são reais? Quando os mapas assumem a escala do real talvez o simulacro passe a ser o objecto. Mas a diluição do real não se fica por aqui. Parte do conto envolve as consequências de pormenores sociológicos inventados que acabam por transformar o real, como um conceito de unicidade do ser cuja implicação prática passa, em gémeos, pela invisibilidade completa de um deles. Essa sombra, progressivamente invisível na medida em que o mundo real se adapta à ficção, reserva a mais curiosa surpresa do conto. Vénia borgesiana, na Lightspeed Magazine.

The Hounds of Tindalos: Frank Belknap Long fez parte do círculo de escritores que aprofundou e manteve vivo o mythos de Cthulhu lovecraftiano. Este conto replica o estilismo de H.P. Lovecraft, embora sem o exagero barroco de recorte cósmico. Tenta andar lá perto, mas não chega lá. Long era admirador de Lovecraft mas não o consegue imitar. A história mergulha-nos num mundo de misticismos ocultos, com base naquela ideia clássica que a ciência contemporânea apenas consegue levantar o véu para antigos saberes esquecidos, a curiosa estratégia encontrada por estes autores para conjugar a atracção pelo oculto com a pujança da revolução científica que começava a modelar o século XX. Note-se que o mythos foi desenvolvido nos primeiros anos do século passado, quando as transformações trazidas pela conjugação de industrialização, tecnologia e progresso cientifico começaram a dar forma ao que se veio a tornar a sociedade contemporânea. Long mostra-nos um infatigável explorador dos espaços místicos que experimenta uma droga rara que lhe permite quebrar as barreiras do espaço-tempo. Abandona a linearidade e mergulha numa simultaneidade em que todos os tempos coexistem num mesmo momento. E ao chegar ao início do tempo depara-se com um segredo inexplicável e com os mastins de Tíndalos, implacáveis caçadores daqueles que se atrevem a ultrapassar as barreiras do tempo. Numa vénia a outra vertente da obra de Lovecraft, Long define estes seres monstruosos como capazes de se infiltrar na nossa realidade através de intersecções de geometrias angulares, o que recorda um conto de Lovecraft sobre um jovem estudante que descobre uma divisão inteira dentro de um ângulo recôndito da água furtada que aluga.

The Panda Coin: O percurso de uma humilde moeda pelas mãos de quem a usa a servir para fazer um retrato transversal de uma distopia futura. O percurso começa nas mãos de um humilde trabalhador humano, que projecta na filha os seus esforços e esperanças. A filha afinal tem os seus segredos e usa a moeda para pagar uma dívida a um elemento social menos saudável. Este, por seu lado, faz uma encomenda a um criminoso mais acima na cadeia alimentar, que tem como peculiaridade estar apaixonado por uma prostituta andróide. Ela é fiel à sua programação original mas busca a elevação das limitações da sua consciência artificial limitada comprando blocos de memória na esperança que isso lhe traga transcendência. Quem vende este hardware, andróide de nível superior, reporta directamente a uma das inteligências artificiais que controla a sociedade desta colónia orbital que, por bizarrias de programação, replica em cada sector o clima de cada mês do ano. Esta percebe logo a razão de ser do artefacto: fazer um reconhecimento profundo da colónia. Um conto intrigante. O artifício da moeda que muda de mãos permite ir levando o leitor à descoberta desta sociedade onde humanos estão no nível inferior, logo seguindo dos não menos infelizes andróides, num mundo dominado por inteligências artificiais que tudo vêem. É também curioso que cada personagem projecte no nível acima de si ideais de perfeição, enquanto despreza aqueles que lhe estão abaixo. Isso é particularmente visível na meretriz robótica, que desdenha os clientes humanos de que necessita para sobreviver mas é menorizada por quem lhe vende os adereços inúteis com que espera aumentar a sua inteligência. Uma visão brutal de Jo Walton.