sexta-feira, 4 de julho de 2014

Comrades of War


Sven Hassel (2004). Comrades of War. Londres: Cassell.

Apesar de nutrir uma intensa curiosidade sobre a história da II Guerra, confesso que raramente li romances sobre o assunto. A história, e as histórias, reais são por si suficientemente intrigantes. Já a ficção militarista nunca me interessou por aí além. Peguei neste livro por sugestão do autor de Nome de Código: Portograal e não esperava mais do que uma história grandiloquente de combates violentos e soldados heróicos, vistos sob uma perspectiva germanófila, escritas por um dinamarquês que combateu na Wermacht durante a guerra. Mas, ao contrário do que o nome do autor, título e capa do livro possam deixar pensar, este romance não é nada do que se esperava.

Ao lê-lo remeti-me para memórias longínquas da leitura de O Valente Soldado Chveik, romance satírico onde um não muito brilhante camponês checo sobrevive às inúmeras tropelias da vida como soldado nas forças imperiais austro-húngaras. A sucessão de peripécias caracterizava com uma ironia patética os absurdos da I guerra. Comrades of War segue na mesma linha de sucessão de aventuras irónicas, embora o seu tom esteja muito distante da comédia simpática da obra de Hasek. Poderia também recordar Zweig e All Quiet on The Western Front, mas sente-se um pronunciado tom de ironia trágica e um sentimento de decadência absoluta que ultrapassa o romance clássico sobre a guerra nas trincheiras. Há outra obra que me assombrou a mente durante esta leitura: a iconografia de violência infernal das Tentações de Santo Antão do pintor medieval Hyeronimus Bosch. A escuridão, as trevas profundas iluminadas pelo fogo dos incêndios que iluminam pesadelos de violência injustificável, nepotismo, decadência moral e arrastamento do humanismo nas vielas infectas de uma sociedade totalitária dominada pelo horror normalizado.

Acompanhamos as aventuras de um grupo de camaradas de armas que atravessam a II guerra num batalhão penal das forças alemãs. Violentos, desapaixonados, criminosos, são um grupo de anti-heróis que se esforça por sobreviver na turbulência da guerra. Mas, paradoxalmente, são heróis bondosos por comparação ao ambiente que os rodeia, à amoralidade social daqueles que vivem sob o regime, do nepotismo alastrante, da corrupção moral dos que beneficiam do estado das coisas e do ambiente opressivo. Hassel escreve a partir das suas experiências, e descreve uma alemanha nazi à beira do colapso, onde a vida vale pouco menos que nada por entre as bombas aliadas, o horror da frente leste ou o zelo dos sicários do regime.

O romance constrói-se a partir de uma colagem por vezes desconexa de vivências. O grupo de soldados está a convalescer das feridas de guerra em Hamburgo, o que serve como pretexto para um mergulho no mundo das brigas da soldadesca e dos bordeis onde os soldados esquecem o desespero da morte quase certa. Se a viagem dos feridos é um exemplo de desencanto, a convalescença é o abandono aos sentidos. O regresso à frente é inevitável e traz consigo histórias arrepiantes de combate. Termina, curiosamente, como Juliette do Marquês de Sade, com um dos personagens abandonado pela família mergulhado numa orgia debochada de oficiais da SS, convencidos da sua supremacia enquanto ao seu redor o país se desmoronava. Pelo meio ainda temos um mistério psicopatológico com um estrangulador à solta pela cidade.

O que toca e impressiona neste livro não são os feitos dos personagens ou as grandes histórias. São os pormenores, que Hassel desvenda de forma muito seca em poucos parágrafos. Os soldados enforcados por cobardia por capricho do juiz dos tribunais marciais, mais preocupado com o seu animal de estimação do que com a gravidade das sentenças que despacha. A mulher grávida que, ao ver o seu marido partir para a frente, colapsa e insulta o regime, para logo ser levada para destino certo por elementos da polícia política enquanto o seu marido sonha com o regresso enquanto parte de comboio. Este, e outros pormenores entretecidos no livro, traçam e dão corpo àqueles parágrafos dos livros sobre a historia da II guerra. Transmitem uma imagem poderosa e indelével na mente, porque o leitor mais informado sabe que se o romance é ficção estas histórias foram factos históricos. E fica a suspeita que Hassel nos fala da sua experiência, deixando um testemunho do que vivenciou como soldado do Reich na II Guerra. O tom cru da narrativa, com óbvias falhas literárias e o curioso carácter fragmentário parecem indicá-lo. Mais do que histórias, são memórias sublimadas em romance.