terça-feira, 3 de junho de 2014

Far Horizons


Robert Silverberg (ed.) (1999). Far Horizons: All New Tales From The Greatest Worlds Of Science Fiction. Nova Iorque: HarperCollins.

A tentação de qualificar esta antologia como uma equipe de sonho de space opera é enorme, mas há que contar com a excepção do editor, Robert Silverberg, que inclui um conto no seu universo de história alternativa que não andando arredado de périplos por terras estranhas não faz uso dos elementos narrativos deste sub-género. Far Horizons é em essência uma antologia de grandes vistas, onde autores consagrados dão ao leitor vislumbres das suas séries de maior sucesso. Aproveitam para acertar fios narrativos ou contar histórias que ficaram de fora das obras canónicas. E é, de facto, uma equipe de sonho. Os autores representados são, ainda hoje, nomes incontornáveis da FC clássica e contemporânea. É difícil imaginar um apanhado mais completo de grandes nomes e séries marcantes.

Old Music and Slave Women - passado no universo Ekumen de Ursula K. LeGuin, este conto surpreende pela subtileza da autora na inversão de papéis. Acompanhamos as desventuras de um astuto embaixador da organização galáctica num planeta consumido por uma guerra civil. A sociedade planetária imaginada por LeGuin é decalcada no sul americano dos tempos do esclavagismo e a guerra civil um conflito sem quartel entre a sociedade esclavagista e os antigos escravos e seus apoiantes, que lutam pela abolição do aberrante regime. A intrigante inversão feita pela autora num tema que, para um escritor americano, é politicamente muito intenso, está na cor da pele. Os esclavagistas são negróides e os escravos brancos. De resto, espelham-se as injustiças e incertezas numa história à qual se se retirassem culturas e espécies alienígenas ou ansibles manteria o mesmo espírito.

A Separate War - Não consigo perceber se a visão de Haldeman de um futuro onde relações homossexuais são a norma e a heterossexualidade um desvio perverso tido como curável na adolescência é fina ironia ou trai uma profunda mas inconfessa homofobia. Suspeito que seja a segunda, pelo esforço que o autor coloca em mostrar que esse futuro é uma utopia distópica (e sim, sei bem o que fiz: por utopia distópica quero simbolizar uma visão de perfeição aberrante para quem esteja de fora). Esta falha conceptual não chega para estragar o brilhantismo da ficção militarista de Haldeman, essa sim uma fina ironia inspirada na catástrofe do Vietnam. À parte os parágrafos que desperdiça a explicar as inconsistências da sexualidade futura, este conto interliga muito bem os acontecimentos da série Forever War e continua hoje como um plausível e bem concebido cenário de guerra futura, uma das mais clássicas vertentes da FC.

Investment Counselour - Orson Scott Card leva-nos ao momento em que Ender Wiggin, ao mesmo tempo herói e criminoso de guerra, decide o que vai fazer com o resto da sua vida. Ao chegar a um planeta de fronteira, vê-se na necessidade de contabilizar a riqueza acumulada no tempo real das viagens relativísticas e depara-se com um funcionário particularmente corrupto. Só que tentar desviar um pouco dos vastos fundos de alguém protegido pela armada militar pode tornar-se potencialmente letal. A morte violenta na prisão deste funcionário motiva Ender a tornar-se alguém que fala pelos falecidos, que busca as verdades das suas vidas e medita na recordação. É intrigante que surja um personagem inesperado, com o seu quê de deus ex machina, na forma de uma simpática inteligência artificial suficientemente potente para dar a volta às burocracias das declarações de rendimentos. Fazia-me jeito uma coisa assim. Lembro-me vagamente de ler Speaker for the Dead há uns anos, e mesmo com este conto continuo imune ao universo ficcional de Ender's Game.

Temptation - David Brin é um eterno optimista que consegue pintar as piores distopias com cores rosáceas... e meter no meio dos textos longas diatribes que nos demonstram os mais elementares erros do senso comum. É o caso deste conto, passado no universo uplift. Golfinhos inteligentes são abandonados num planeta usado como refúgio pelas espécies sentientes das galáxias, enquanto os seus companheiros de aventura prosseguem uma odisseia estelar no convoluto universo das espécies alienígenas elevadas artificialmente à inteligência. Os golfinhos deparam-se com um conjunto de artefactos avançados onde lhes é feita uma proposta tentadora: juntar-se a uma nova forma de viver no universo, utilizando tecnologia avançada para que cada um mergulhe no seu mundo utópico favorito. Parece o sonho de qualquer ser sentiente, mas estes depressa se apercebem da armadilha contida nestas utopias. A liberdade de ser, de conseguir ou falhar, dependente das condicionantes ambientais, é algo de fundamenal ao ser, que se perde ao mergulhar de forma acrítica em mundos de fantasia. Brin aproveita um conto longo para uma reflexão sobre a importância do pensamento crítico sobre a felicidade da superstição e importância da liberdade individual. Com golfinhos inteligentes, que faz todo o sentido no universo deste autor cuja prosa auto-consciente nos dá momentos interessantes.

Getting to Know the Dragon - Robert Silverberg leva-nos ao seu mundo da eterna Roma, uma história alternativa onde o cristianismo não se chegou a formar e o império romano manteve-se até aos tempos actuais. O interessante destes exercícios são os voos de história imaginária com que os autores nos mimam, e o inteligente Silverberg delicia-nos com uma plausível cronologia do que teria sido o mundo com o império romano a manter-se, interrelacionando-se com a China, as índias, Pérsia e Japão ou tentando e falhando uma conquista dos impérios inca e azteca. Nos dias do conto um inventivo académico divide o seu tempo entre acompanhar as fugazes loucuras do herdeiro do trono imperial e o seu estudo do imperador Trajano, não o original, claro, mas um mais tardio que, decalcado em Fernão de Magalhães, deu novos mundos ao mundo levando uma frota romana a circum-navegar o planeta. Mas ao analisar o diário deste intempestivo imperador o académico descobre que ficar a conhecer a realidade de uma personagem histórica pode destruir ilusões.

Orphans Of The Helix - De cair o queixo, este conto de Dan Simmons passado no universo ficcional dos Cantos de Hyperion. Space opera pura, de vistas vastas, diversidade de concepções de possibilidades culturais pós-humanas e alienígenas, aventura pura, sempre com a vastidão das civilizações galácticas como pano de fundo. Tendo eu um carinho especial pela space opera, fico à partida encantando, mas surpreende como contido dentro deste conto curto está um mundo ficcional vastíssimo.

Sleeping Dogs - desigualdades e impactos imprevistos da engenharia genética são os grandes impulsionadores do universo Sleepless de Nancy Kress. Num futuro próximo as possibilidades da engenharia genética possibilitam a alguns diferenciar-se do normal humano, e o impacto disso desperta profundas clivagens entre instituições tradicionais, os humanos normais que se sentem ameaçados por aqueles que utilizam as vantagens conferidas pela modificação genética, e uma nova humanidade ostracizada pelas suas capacidades supra-humanas. É neste ambiente que Kress nos conta uma história de vinganças contra cientistas do sub-mundo da genética ilegal, périplo pelos dilemas e clivagens de uma sociedade tornada desigual pela tecnologia. Um tema que hoje está ainda mais actual do que na altura em que Kress nele se iniciou com Beggars in Spain, porque hoje as tecnologias biomédicas e de automação estão capazes de fornecer aqueles com maiores meios financeiros possibilidades inimagináveis há poucas décadas, e dividir o mundo entre uma rarefeita elite tecnocrática e massas empobrecidas. Se é que esta divisão não está já cimentada na contemporaneidade.

The Boy Who Would Live Forever - O universo Heechee de Frederik Pohl, com ponto de partida no brilhante e premiado Gateway, dispensa apresentações. É um dos exemplos máximos do que pode ser a space opera enquanto espaço ficcional e recreio de ideias, no caso o libertarianismo de fronteira assente na tecnologia que de que Pohl tanto gostava. Este conto elabora precisamente nessa visão romântica do espírito pioneiro, através das aventuras de três jovens que apostam tudo para chegar ao asteróide Heechee e partir nas arriscadas missões de exploração da tecnologia alienígena. Os eventos ultrapassam-nos, e resta-lhes arriscar uma viagem ao centro da galáxia, local de refúgio da civilização Heechee. O primeiro contacto com os intrigantes alienígenas é desconcertante, e o tempo num horizonte de acontecimentos do buraco negro corre mais lento. Pohl utiliza esta variante das aventuras de rapazes no espaço para interligar a evolução do universo ficcional Heechee.

A Hunger for the Infinite - e, de facto, é de infinito que se fala na série Galactic Center de Gregory Benford, onde a humanidade explorar o brilho do centro da galáxia mas depressa se vê ameaçada pela hegemonia da vida mecânica inteligente, que considera a vida biológica uma praga a exterminar. O intrigante neste conto está na visão de Benford sobre o que seria a curiosidade de uma inteligência não-humana sobre o que é o ser humano. A história centra-se no bizarro sentido estético de uma inteligência artificial que infecta um feto para renascer como criança humana. A frieza cruel da inteligência mecânica não é revista pelo seu aspecto humano, que prefere a aniquilação à reincorporação na matriz digital.

The Ship Who Returned - confesso que sempre equacionei Anne McCaffrey com histórias sobre dragões e desconhecia os seus esforços no campo da space opera. Que, a avaliar por este interessante conto, têm o seu valor. A lucidez da sua prosa faz deslizar uma divertida história sobre uma nave controlada por um cérebro humano feminino que se vê obrigada a intervir num planeta remoto para salvar uma civilização de freiras de um ataque de piratas espaciais. A forma como estes são derrotados sublinha o espírito feminino da força natural sobre a habitual visão masculina de batalhas espaciais carregadas de mísseis, lasers e testosterona.

The Way of All Ghosts - Greg Bear encerra esta antologia com um exemplo do pior vício do conto de FC, algo até agora ausente nos textos que o precederam: um conto tão embrenhado no mais vasto mundo ficcional de que faz parte que se torna quase incompreensível para quem não esteja a par das suas iconografias. Como introdução à série Way é um desastre. O conto roça a incompreensibilidade, com tanto bombardeio de imagens confusas e conceitos que fariam todo o sentido para um conhecedor da série, mas nenhum para um leigo. Talvez por isso Silverberg o tenha colocado a rematar a antologia, vendo-se obrigado a utilizá-lo mas empurrando-o para as páginas finais, diminuindo o seu impacto desafinador.