terça-feira, 22 de abril de 2014
Contos Inomináveis
Robert E. Howard (2014). Cultos Inomináveis. S. Pedro do Estoril: Saída de Emergência.
É em bom tempo que a Saída de Emergência nos traz uma antologia do horror pulp clássico de Robert E. Howard. Publica as traduções do clube de tradução literária da Lusófona no que é uma obra de referência para aqueles que desejem aprofundar o conhecimento da evolução histórica da literatura fantástica. Não sendo obras inéditas, fáceis de encontrar em edições anteriores ou online, o seu mérito está no ser uma tradução para português que as torne mais acessíveis ao público. Fica como obra de referência, mas também leitura divertida de um autor clássico que se hoje nos parece datado ainda nos oferece momentos interessantes de leituras. Nestes contos Howard andou à volta do cânone dos mythos de Cthulhu, que habitualmente associamos em sentido estrito a Lovecraft mas vão beber influências a Machen e foram visitados por autores como Derleth, Ashton-Smith e Bloch. A visão lovecraftiana tornou-se a mais prevalente mas as variantes destes autores têm o seu interesse. Estamos a falar de ficções, onde os cânones sólidos são referência mas o grande oceano de variantes é tão ou mais interessante do que o padrão literário.
A Pedra Negra recorda-nos o quanto a ficção pulp consegue ser boa. Não há palavras ao acaso neste conto onde todos os elementos são expressamente criados para despertar sensações de curiosidade ao leitor. A progressão narrativa em espiral vai-nos revelando camadas ocultas e espicaçando a curiosidade, enquanto a linguagem cerrada mistura com muita eficácia elementos da ficção de horror. Apesar de escrito por um autor pulp há mais de cinquenta anos, o conto tem um poder enorme de agarrar o leitor. Howard leva-nos por vários caminhos, desde mistérios bibliográficos a lendas daquela europa mais selvagem para lá das fronteiras do antigo império romano, até nos revelar que monstruosas criaturas com forma de sapo foram, em tempos, adoradas por tribos obscenas que a espada dos crentes se encarregou de eliminar. Os fragmentos de memória despertos pelos parcos vestígios que sobrevivem são capazes de levar os homens à loucura. Se a história nos diverte, o que realmente surpreende é a qualidade da prosa.
O carácter pulp da ficção de Howard está patente em Vermes da Terra, outra perfeita mistura de prosa de aventuras selvagens com o gótico grotesco do horror oculto. Buscando vingança pelas acções injustas de um general romano, Bran Mak Morn, rei legítimo dos Pictos que visita incógnito as legiões de Roma, vai despertar horrores do passado que os seus antepassados, a muito custo, empurraram para as profundezas da terra. O conto torna-se mais interessante porque consegue misturar na perfeição diferentes géneros. O militarismo da história antiga em conflito com antepassados selvagens encaixa muito bem com os horrores inomináveis que se ocultam nas sombras.
Se o título O Povo Pequeno nos parece conduzir a um bucólico conto de fadas, Howard depressa nos troca as voltas. A curiosidade de duas crianças pelas criaturas míticas que se ocultam nas ruínas megalíticas leva-as a cruzar-se com os descendentes degenerados dos povos pré-neandertais que, milénios atrás, foram reduzidos às sombras pelas espadas dos homens primitivos. As criaturas de mito são aqui visões degeneradas de horror.
O mergulho nas entranhas cavernosas da terra no conto O Povo das Tervas leva os personagens a reviver dramas do passado. Para Howard a história é cíclica, repetindo os dramas numa circularidade que transcende o tempo. O amante despeitado que quer assassinar o homem amado pela mulher que ama e os leva ao interior de uma caverna descobre-se numa aventura em tempos antediluvianos. Todos reencarnam num passado bárbaro onde os motivos são os mesmos, as acções também, e a redenção final sacrificial se repete. Tempo circular com criaturas monstruosas e bárbaros à misturas.
Talvez seja um traço de época (Lovecraft, por exemplo, não era nada inocente nestas problemáticas) mas há uma forte componente de xenofobia a percorrer Os Filhos da Noite. O início do conto, com o conclave de sábios preocupados com a sua pureza racial anglo-saxónica, aponta para um forte racismo no ideário de Howard. A história depressa resvala para campos mais obscuros no domínio da ficção fantasista que nos dá vislumbres dos horrores ocultos que demolidores de sanidade e, num traço curioso patente noutros contos reunidos nesta colectânea, um acidente dissolve o tempo e leva um dos personagens a reviver outras vidas. Não incidentalmente, revive lutas contra horrendos seres primitivos, humanos degenerados cujo extermínio é visto como um dever civilizacional. É difícil ser mais xenófobo que isto. Redimindo um pouco a memória do autor note-se a profunda poesia surreal da sua visão do tempo como um fluxo circular que se toca nos momentos mais inusitados: "O tempo e as várias épocas não são mais do que as rodas de uma engrenagem, que giram cada uma por si, sem saberem da existência das outras. Por vezes, se bem que muito raramente, os dentes dessas rodas conseguem encaixar-se; as peças começam a juntar-se momentaneamente, dando ao Homem vislumbres para lá do véu da cegueira diária a que chamamos realidade". Sem querer defender o indefensável, a xenofobia explícita nestes textos é marca de época.
Entramos no lado mais lovecraftiano da ficção pulp de Howard com A Avantesma no Telhado. Aqui o horror vem de mistérios esquecidos perturbados pela curiosidade humana e o conto tem uma forte componente bibliográfica, girando à volta do conhecimento secreto contido no lendário livro dos Cultos Inomináveis. A mistura entre biblioteca bafienta e horror sangrento final remete para o mais clássico terror.
Os horrores conjurados pela literatura proibida sublinham as desventuras do herói de O Monstro com Cascos. Um plácido mas dinâmico homem suburbano trava conhecimento com o literato mas misterioso vizinho da sua noiva, enquanto que a cidade onde vivem sofre uma vaga de raptos misteriosos que começa com inocentes animais mas depressa resvala ao desaparecimento de crianças. O culpado é o pacato literato, que oculta na sua casa um pesadelo resultado das suas experiências com invocações demoníacas, criatura de horror que requer alimentação constante.
Deste tema de crimes do passado envolvendo invocações e ritos ocultos vive Não me Cavem uma Sepultura, conto em tom de gótico grotesco onde o falecimento misterioso de um aristocrata de assinalável longevidade despoleta acontecimentos macabros que culminam num demónio arábico que reclama o que é seu. Novamente, este é um conto de perfeita literatura pulp, com cada palavra pensada para arrepiar e causar estranheza no leitor.
Do pulp de horror regressamos ao pulp de aventuras exóticas, desta vez com um fortíssimo pendor yellow peril. Se nos contos sobre valentes bárbaros em luta contra sub-humanos degenerados se notam pontas de xenofobia, neste em que perigosos orientais conspiram para mergulhar o mundo em guerras nos becos recônditos de Xangai a visão do perigo amarelo é perfeitamente notória, mesmo que no final se revele que os revoltosos foram peões manipulados por um homem branco que se disfarça de lama e cujas lealdades recaem não com os indígenas mas com os horrores inomináveis do além-espaço. O Urso Preto Morde vive do extremismo pulp, com um indomitável herói capaz de travar à bala hordes de chineses armados até aos dentes e derrotar os perigosos cultistas da revolução.
Para encerrar o livro outro conto pulp de estrutura clássica, que põem em evidência os vícios do género. Cara de Caveira mergulha-nos na Londres do virar de século, numa aventura mirabolante às voltas com cultos afro-asiáticos, casas de ópio e os perigos de conspirações dominadas por criaturas misteriosas que traçam as suas origens à Atlântida. Howard mete dentro deste conto todos os ingredientes da ficção pulp de aventuras. Múmias que regressam à vida, mistérios do passado longínquo, beldades ameaçadas, cultos sangrentos, antros de ópio em Limehouse, valentes agentes da Scotland Yard, aventureiros caídos em desgraça que se esforçam por se libertar dos males que os algemam, hordes degeneradas de africanos e orientais determinadas em exterminar o homem branco através da invocação de terríveis divindades, combates corpo a corpo até à morte, rusgas, antros decadentes, lojas de antiguidades cheias de intrigantes artefactos, criptas a transbordar de restos humanos ressequidos e drogas capazes de atordoar os sentidos. É provável que tenha deixado algo de fora nesta longa lista. E sim. é notório que o racismo é evidente. Isto é narrativa pulp no seu mais elementar, dependendo de acção contínua cheia de peripécias em catadupa, num estilo narrativo curto e descritivo que vai levando o leitor de situação implausível a situação inacreditável até ao aparente triunfo final do mal, debelado à última da hora pela coragem dos heróis.