quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
Interzone #250
Uma boa razão para ler regularmente a Interzone é a não ficção. O ansible link é um vício confesso, a coluna de Jonathan Calmont é sempre provocatória, as críticas literárias uma mina de sugestões de leitura e as de cinema não poupam argumentos nem se deslumbram com o brilho dos efeitos. A Mutant Popcorn deste mês está particularmente acutilante. O tema é a representação do feminino no cinema, já por si com pano para mangas na análise da visão simplista e estereotipada do cinema comercial norte-americano. Não é por isso surpresa que arrase o Frozen como veículo para venda de peluches e simpatize com o Carrie por ter usado uma actriz adolescente no papel de jovem adolescente, coisa rara no meio (ou, como o colunista tão bem coloca, "played by actresses with the wrong side of twenty well behind them"). Já no Gravity a precisão no caracterizar do filme é brutal. Chama-lhe "a triumph of filmmaking over writing, situation over character, and the technology of spectacle over its human passenger" com o desempenho de Sandra Bullock, em constante e brutal movimento, "a grueling mechanical simulation of the cinematic gaze". Não esquece as incongruências ideológicas de um filme que sublinha viver no sonho de uma realidade alternativa onde os velhos paradigmas da corrida espacial ainda são válidos.
Na ficção a aposta ficou-se pelo pretensiosismo literário, com dois contos muito interessantes, The Damaged e Wake Up, Phil, a ser a excepção a esta tendência. Dos restantes pouco se aproveita, apesar de Labirynth of Thorns ter alguma graça cyberpunk e Bad Times to Be in the Wrong Place um certo encanto mitológico.
The Damaged: um conto muito poderoso, que nos remete para os sonhos e ideário à volta dos andróides e inteligência artificial com um toque re rebelião anti-corporativa e o seu quê de serial killing. Num futuro onde andróides realistas são mercantilizados como máquinas de companhia com uma vida breve de cinco anos. Sendo epítomes da perfeição pós-humana, alguns apresentam um erro recorrente que de alguma forma os danifica. Estes robots acabam nas ruas, concorrendo com as multidões de sem-abrigo pelos recantos esquecidos pelo olhar do mundo. Uma artesã da fábrica de andróides começa a recolher e a trazer para sua casa alguns destes mecanismos danificados, mas o seu altruísmo esconde uma curiosidade mórbida pela intricacia semi-viva dos seus mecanismos. Essa curiosidade leva-a a dissecar os andróides, com óbvias consequências. Mas será que matar algo que apenas simula viver é assassínio? Tudo termina quando se envolve com um modelo obsoleto que, num momento reminiscente de uma das mais tocantes cenas do filme Blade Runner, insiste numa variante de penetrar na fábrica onde foi gerado para conhecer os segredos dos seus criadores. Conto de Bonnie Stufflebeam.
Bad Times To Be In The Wrong Place: este conto de David Tallerman não é nada por aí além, essencialmente uma metáfora de abandono e final de relação amorosa. Tem um momento interessante, quando o personagem se cruza com três estranhos, algo mais nítidos do que a realidade circundante, e fica a saber que o real poderá não passar de uma cópia de segurança com prazo de existência finito. Intrigante variação sobre o conceito de realidade como simulacro digital. Suponho que cada universo artifical holográfico/simulatório digital terá de ter as cópias de segurança em dia, senão algum percalço pode anular a experiência?
The Labyrinth of Thorns: debaixo de muito palavreado aspirante ao literário esconde-se uma fortíssima veia cyberpunk à moda antiga, num conto que, fiel aos princípios do género, nos mostra a percepção de uma metrópole do futuro vista por um agente da lei que se infiltra mentalmente nas redes informáticas de cibercriminosos. Um exercício curioso de Allegra Hawksmoor.
Beneath the Willow Branches: traços de Ballard e Leiber ecoam neste conto onde a viagem no tempo se tornou possível graças a um dispositivo implantado no cérebro que permite recuperar e modificar memórias do passado. Um cirurgião tenta salvar a mulher, inventora do dispositivo, de um coma no presente mergulhando no passado e vai eliminando linhas temporais até a salvar e com isso ficar fora do tempo. Há também uns toques de misticismo de sabor nipónico no conto de Caroline Yoachim que, francamente, disfarça a incoerência debaixo de reminiscências poéticas.
Predvestniki: uma história indecisa, que não sabe se é um mergulho numa falha de realidade durante uma viagem a Moscovo ou uma banal história de relações e traições amorosas. Tenta ser ambos e falha redondamente nos dois aspectos, apesar de ter um começo promissor com um turista que descobre arquitecturas intermitentes no espaço geográfico moscovita. Conto de Greg Kurzawa.
Lilacs and Daffodils: outro conto com pretensões literárias, muito difuso e a roçar o incompreensível. Nos momentos mais lúcidos remete para o clássico Quatermass e sugere tratar-se das reminiscências de um computador consciente que se imagina nas memórias de uma menina de sete anos. Conto curto de Rebecca Campbell.
Wake Up, Phil: P. K. Dick faz uma aparição, disfarçado como elemento narrativo deste conto estranho mas interessante que sublima com muito estilo os psicadelismos e realidades alternativas em colisão que caracterizam a obra do escritor. As realidades são difusas neste conto de Georgina Bruce em que uma mulher, fiel à empresa onde trabalha e vive num regime futurista feudal começa a sentir a sua realidade a dissolver-se após se ter tornado sem querer cobaia em testes a um produto de emagrecimento. Por vezes é a fiel servidora de uma das duas grandes empresas que dominam a vida no sistema solar, por vezes é uma dona de casa dos anos 60, por vezes uma fiel servidora da outra empresa que domina, senhora feudal do futuro neoliberal, sobre uma humanidade de servos. Esta dissolução de realidades encerra a ficção desta edição da Interzone numa nota muito positiva.