terça-feira, 20 de agosto de 2013

Aurorarama



Jean-Christophe Valtat (2010). Aurorarama. Nova Iorque: Melville House.

Como não poderia deixar de ser, este livro conta uma história envolvendo personagens curiosos e peripécias aventurosas. Mas o verdadeiro protagonista deste intrigante Aurorarama é a cidade, a fantasia arquitectónica de uma cidade impossível nos gelos do ártico. Com uma fortíssima sensibilidade steampunk esta criação de Jean-Christophe Valtat deslumbra a imaginação com as visões de uma arquitectura eclética implantada nas costas da Gronelândia. Uma espécie de Veneza, cidade-estado das brumas do norte que é porto de abrigo para os que procuram a riqueza nos desertos gelados e que encerra um microcosmo social que mistura rebeldes, aristocratas decadentes, um conselho governativo conservador e uma élite de vasculhadores de esgotos que se veste como os médicos da peste medievais.

É neste cenário que um funcionário público consciencioso e um professor universitário dilettante se vêem envolvidos nas lutas fracturantes que dividem a sociedade novo-veneziana. Estes personagens não são completamente inocentes. O funcionário administrativo é o autor de um panfleto secreto que delineia uma visão alternativa para a sociedade ártica, muito do agrado das comunidades subterrâneas de anarquistas, sufragistas e boémios que gostariam de ver mudar o rumo da cidade. O diletante, boémio convicto, auxiliou na escrita e distribuição daquilo que perante os poderes instituídos convém ser mantido em segredo. Poderes esses que encarnados num conselho governativo ultra-conservador, reclamam ser os herdeiros dos fundadores da cidade que se criogenizaram na esperança de um regresso futuro. O poder é mantido graças aos esforços de uma violenta polícia não muito secreta com o curioso nome de cavalheiros nocturnos que tem a cortesia de nomear advogados corruptos como anjos da guarda dos cidadãos que tiverem a má sorte de cair nas suas graças. A pressão na cidade cresce, no exterior a repressão dos nativos inuit às mãos do conselho começa a atingir níveis insustentáveis e paira no ar uma misteriosa ameaça com a forma de um dirigível que aparece sobre a cidade sem pré-aviso. Por entre os desmandos do poder, as pressões da polícia secreta, as aventuras dos boémios e anarquistas e divagações shamânicas por entre os gelos gronelandeses o ponto de colisão resulta no derrubar da ordem estabelecida na cidade.

Por entre a arquitectura arte-nova e os engenhos a vapor que permitem esquecer o gelo inclemente há uma cidade vibrante, com os seus dramas, locais de eleição e desfiles de vida. Valtat inspira-se claramente na elegância parisiense do fin de siècle e na decadência de Berlim nos tempos da república de Weimar para criar esta sua cidade imaginária. Caracterizando-se por uma curiosa inventividade na construção do tecido social imaginário e com uma prosa que trai um humor negro muito certeiro, Aurorama é um daqueles livros que se lêem pelas aventuras da linha narrativa mas encantam pelos mundos imaginários que lhe estão subjacentes.