quarta-feira, 3 de abril de 2013

Vintage Tomorrows



James Carrott, Brian Johnson (2013). Vintage Tomorrows. Sebastopol: O'Reilly Media

Ora, um futurista e um historiador encontram-se num bar e... e pronto. Essencialmente é isto. Podemos ficar por aqui porque a coisa não muda. O livro arranca desta forma e não perde o tom de informalidade excessiva. O objectivo é ambicioso. Vintage Tomorrows pretende analisar o steampunk enquanto fenómeno literário e estético inserido na história das contra-correntes artísticas e sociais com apontamentos para tendências de futuro. Uma visão difícil numa corrente estética recente e em mutação, e que ao longo do livro acaba por ser intuída sem que seja conclusiva.

O problema de Vintage Tomorrows é viver muito de informalismo e conhecimento anedótico, dispersando-se num conjunto alargado de vinhetas que por si são interessantes mas às quais falta um fio condutor intelectual. Sabemos que subjacente está a busca pela definição do que é Steampunk, mas os autores não se dão ao trabalho de colar o mosaico de relatos e entrevistas numa linha de pensamento coerente. É indubitável que ao leitor é fornecida uma quantidade enorme de material, essencialmente fontes primárias filtradas e resumidas. O grande ponto forte do livro é a recolha e partilha de um conjunto vasto de pontos de vista que abrangem desde os membros mais activos da comunidade a vozes críticas da ficção científica que incluem Margaret Atwood e Bruce Sterling, e chega a incluir nomes que estão longe das disputas sobre géneros de futurismo ficcional como Bruce Mau ou Timothy Leary. Infelizmente, raramente passa de um assentar de depoimentos com ideias interessantes e algumas considerações dos autores num tom a roçar o histérico.

Através dos depoimentos conseguimos traçar uma certa visão do que é o Steampunk. Movimento auto-consciente, alicerça-se numa estética muito própria que se reapropria da iconografia do final do século XIX, industrial e vitoriana. Recria conscientemente a realidade sob o prisma de uma fantasia que olha para futuros inverosímeis onde a tecnologia mecanicista do final do século XIX evoluiu para um patamar similar ao da tecnologia da nossa era contemporânea. Assumem-se como escapistas, equilibrado o deleite com o revivalismo vitoriano com a consciência que este tem uma forte carga de desigualdade, injustiça social, colonialismo e mentalidade anti-progressista que fica quase sempre de fora das narrativas do género.

Os autores vão interligando o gosto pelo Steampunk com a necessidade contemporânea de apropriação tecnológica, observada pelo prisma da evolução das contra-culturas. A páginas tantas, começa a notar-se que estes querem à viva força conotar o Steampunk com movimentos DIY, comparando directamente o espírito de recriação e apropriação da tecnologia sob temática vitoriana com os hackers polifacetados do movimento Maker. Num rasgo de entusiasmo, chegam a apontar que a mesma editora deste livro apoia o movimento através da publicação da revista Make e livros associados. Feliz coincidência, dizem, mas o leitor mais acisado chama a isto product placement. As similaridades entre quem pega no martelo e na tocha para criar elaborados objectos de inspiração vitoriana e aqueles que hackam em arduino para fazer de tudo um pouco existem, mas não são tão profundas como nos querem fazer crer. Se a vontade de modificar e recriar a tecnologia contemporânea é um elo comum, a divergência está no lado profundamente estético e  carácter ficcional das fantasias vitorianas. A funcionalidade costuma estar alheada das fabulosas reconstruções Steampunk, enquanto para os makers a beleza do produto final é algo de inconsequente.

É curioso notar que o trabalho menos coerente é o do historiador James Carrott. Boa parte do que escreve são reminiscências pessoais e um relato da sua progressiva inserção em grupos completamente dedicados ao Steampunk e o sentimento de pertença a isso associado. Essencialmente, é o diário de um fanboy entusiasmado por ter sido aceite no clube, com uns pozinhos de devir histórico para tentar dar um ar mais intelectual à coisa. Grita como uma adolescente frente ao seu ídolo ao falar de Timothy Leary e baba-se verbalmente ao contar as suas peripécias com um grupo de makers steampunk no festival Burning Man. Já Brian Johnson é mais meticuloso, como seria de esperar do futurista residente da Intel que através do Tomorrow Project utiliza a imaginação dos autores de ficção científica como forma de analisar tendências futuras que poderão ser incorporadas na tecnologia de consumo. É deste autor que saem as análises mais coerentes e as entrevistas a pesos pesados do ecossistema de gurus tecnológicos do calibre de Bruce Sterling ou Bruce Mau.

Vintage Tomorrows desilude profundamente. Surpreende pela quantidade de informação e diversidade de pontos de vista que disponibiliza ao leitor, dando a cada um bagagem para pensar e recriar mentalmente as questões levantadas. Mas falha na coerência, no tom excessivamente informal, na incapacidade de ao fim de dezenas de entrevistas tirar alguma conclusão. Por si só, seria um excelente livro de introdução ao Steampunk, retratado num panorama abrangente, e seria um excelente companheiro ao superlativo e profusamente ilustrado Steampunk Bible editado por Jeff Vandermeer. Infelizmente, os autores anunciam ruidosamente a pretensão de que este livro seja algo mais, seja um retrato profundo inserido na história das correntes culturais e na contemporaneidade, falhando redondamente pela preocupação excessiva na simplificação literária. Vintage Tomorrows é um bom mapa do Steampunk, mas pretende ser um guia, tarefa onde falha pela ausência de apontamentos de direcção. Descrições das cervejas bebidas a acompanhar as conversas é que não faltam para dar sede aos leitores. Quanto ao carácter futurista anunciado nas primeiras páginas, a grande conclusão que tiram é que a vontade de apropriação dos objectos tecnológicos é uma forte tendência de futuro. E isso, para quem segue o mundo tecnológico contemporâneo, não é nenhuma novidade.

Post script: Vintage Tomorrows tem a chancela da O'Reilly Media, editora cujo dono acabou de ser arrasado por uma lúcida crítica de Evgeny Morozov ao hábito de distorcer linguagem e simplificar excessivamente em nome de um utopismo tecno-cêntrico de validade duvidosa mas com lucro garantido. Este livro é sintomático do estilo: tecno-fetichista, vago e sem se esforçar em aprofundar com seriedade o campo que apregoa querer estudar.