quinta-feira, 7 de março de 2013

Mercado de Trabalho

Entregámos a ladrões as chaves do cofre. Encorajados, roubam-nos à descarada e têm o desplante de impor as suas ideologias pervertidas como imperativo de salvação nacional.

Vivi uns anos na cidade histórica de Santarém e nas suas ruas houve sempre um pormenor que me intrigou. A quantidade de pessoas, geralmente idosas, que se congregava naturalmente num espaço banal, praceta entre edifícios sem interesse por aí além no cruzamento da rua Pedro Canavarro com a Capelo Ivens, próximo do largo do Seminário. Não era um local particularmente atractivo, não era jardim aprazível, não era ponto central na cidade, mas durante o dia estava sempre cheio de gente que se encontrava e por ali ficava sem fazer nada de especial. Um dia um amigo conhecedor da terra explicou-me o porquê daquele local estar enraizado nos hábitos dos habitantes. Era, segundo ele, o local onde ficava o antigo mercado de trabalho. De madrugada, todos os que queriam trabalho aguardavam naquele local a chegada dos encarregados das casas agrícolas que os escolhiam para a jorna de trabalho nos campos. Escolhidos eram os que se mostravam mais valentes e dóceis. Aos doentes ou aos que incorressem do desagrado dos encarregados e dos seus patrões esperava-os o desespero de não terem dinheiro para dar de comer aos seus filhos. Aos que trabalhavam, talvez sentissem algum alívio enquanto suavam nos campos. Mais um dia de jorna, e o amanhã nunca estava garantido.

Recordei-me disto após ler sobre as recentes declarações do (ainda) primeiro ministro sobre a necessidade de baixar o salário mínimo para melhorar a competitividade da economia, dita como se de medida de salvação nacional se tratasse no país que tem dos mais baixos salários mínimos da União Europeia, economicamente deprimido por decretos e diktats externos, arrasado em nome da validação das teorias austeritárias cujos resultados práticos teimam em não se coadunar com as previsões sem que isso impela a sua aplicação cega, um país que está a ser destruído em nome da "credibilidade", onde as regras do mercado livre se aplicam a tudo menos a um sector bancário corrupto que depende do estado para o salvar dos buracos financeiros trazidos pela especulação irresponsável, onde os cidadãos são constantemente moralizados com a ideia de que vivem acima das suas posses e devem penitenciar-se empobrecendo. País onde a cada dia recuam direitos sociais, a economia se afunda e os cidadãos perderam a perspectiva de futuro. Um país onde a classe política dominante alardeia com gaúdio a sua inépcia para qualquer coisa que não a corrupção activa e cedência às solicitações de grupos de interesse endinheirados.

Direitos sociais como o salário mínimo não são, como nos querem fazer crer, privilégios atribuídos a um lumpen inútil e preguiçoso. São direitos pensados para mitigar as injustiças do passado, cercear a exploração esclavagista do trabalho e dar um mínimo de condições sociais dignas à maioria da população. Estão hoje claramente na mira daqueles que querem embaratecer os custos com capital humano para possibilitarem a maximização de lucros a curto prazo e o seu enriquecimento pessoal. A vontade de regredir é constantemente afirmada como algo de benéfico, competitivo, empreendedor. Mas benéfico para quem? Apenas para quem nos propõe e impõe a regressão. Que o país se afunde, que as pessoas empobreçam. Interessa é enriquecer depressa ou aumentar o nível de enriquecimento, de preferência com contratos de privatização ou parcerias público-privadas, que são essencialmente rendimentos máximos garantidos para o capitalismo que se diz empreendedor mas vive encostado aos dinheiros públicos que por cá reina.

Para todos ficou mais uma acha para a fogueira, mais uma confirmação que os líderes democraticamente eleitos o foram sob falsas promessas e mentiras, e mal chegados ao poder se revelam lobitos ineptos encarregues de guardar o galinheiro, que argumentam e impõem para que os verdadeiros lobos tenham o acesso ainda mais facilitado às galinhas. Mais uma confirmação de que estamos a ser governados por yes men de interesses velados que, utilizando as tácticas que Naomi Klein tão bem explica em The Shock Doctrine, procuram fazer regredir o país, devastar direitos sociais,  aprofundar desigualdades e canalizar os dinheiros públicos para bolsos privados. Recordando que quanto mais repetimos uma ideia errada mais nos convencemos que está certa, David Soares alerta muito bem para um plano mais alargado de combate aos direitos sociais elementares, plano ideológico em que os pressupostos económicos são colocados ao serviço da ganância de elites.

Nota final: nada tenho contra quem trabalha e enriquece com o seu mérito e esforço. Mas parece-me que esses são uma rara minoria nos tempos que correm, se não o foram sempre.