quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A Princess Of Mars




Edgar Rice Burroughs (1917). A Princess of Mars.

O fardo do homem branco torna-se aparente nas estepes bárbaras marcianas, onde as diferentes espécies humanóides lutam entre si por pura rivalidade. Mesmo entre as civilizações mais avançadas a violência impera num planeta que já viu melhores dias, mantido vivo pelos esforços de uma milenar fábrica de oxigénio. Felizmente, há a elegância de um cavalheiro com o melhor dos dons da civilização europeia transplantada para o novo mundo e uma beldade exótica para salvar o mundo marciano.

Confesso que nunca olhei com olhos de ver para a obra de Edgar Rice Burroughs. Sobejamente conhecido graças às aventuras Tarzan, a sua personagem masculina de tanga que mistura a aristocracia e a selva em aventuras nas áfricas dos sonhos ficcionais da viragem do século XX, é autor de uma vasta que se qualifica como uma sólida referência na literatura pulp de aventura. Um pendor pessoal para as bizarrias da teoria da terra oca já me levou a considerar ler o At The Earth's Core, mas da intenção ao esforço vai uma distância até agora intransponível. E. eventualmente, peguei neste A Princess of Mars.

Já se chega a este livro com ideias pré-concebidas. É inevitável. John Carter e Dejah Thoris são personagens icónicos, extensivamente adaptados ao cinema e banda desenhada, e já sabemos o que esperar do livro e do mundo ficcional de um planeta Marte com civilizações decadentes e tribos aguerridas em lutas constantes, do planeta vermelho dos homens de pele avermelhada, do orientalismo que influencia a visão dos reinos rivais de Zodanga e Helium, dos tharks de quatro braços, de criaturas ferozes com aspecto assustador. Apesar de não ser inesperado é bom mergulhar na prosa de época de Burroughs, e perceber que apesar de estar inevitavelmente datada ainda se lê com prazer, como obra despretenciosa de aventura pura.

Esta é uma obra de época. O Marte imaginado reflecte alguma da ciência da época, em particular as observações de Lowell que o levaram a postular a existência de canais na superfície marciana, mas reflecte essencialmente um imaginário pós-vitoriano sobre as vastas expansões territoriais do mundo para lá da europa (e daquela extensão europeia que são os Estados Unidos. Troque-se os céus vermelhos marcianos pelas planícies do oeste americano ou pelas selvas africanas, Tharks por índios aguerridos ou homens de Helium por resquícios de civilizações perdidas no meio de áfrica e o efeito seria pouco diferente. O exotismo orientalista, patente nas descrições das cidades profusamente ornamentadas, dá o mote a esta visão de um planeta onde o aproveitar de diferentes formas de luz possibilita o voo ou as viagens interplanetárias.

O mito é marcadamente europeísta, com um John Carter que apesar de caído por acaso no planeta depressa se revela superior aos indígenas locais, cujas acções modificam os modos de vida nativos, e que como não podia deixar de ser arrebata o coração da mais bela das marcianas. É a típica visão romântica do fardo do homem branco, de ir para as selvas do mundo civilizar os indígenas, mostrar-lhes as trevas onde vivem através da luz da civilização ocidental, naturalmente superior a qualquer outra. Uma visão que teve a sua apoteose sangrenta nas trincheiras da Flandres e que felizmente de histórico destino manifesto se tornou em momento histórico em processo de esquecimento.

Como nota final, não posso deixar de reparar como grande parte do exotismo é conferido pela nudez natural das personagens, algo apropriado a uma época pós-vitoriana onde as roupas quase tudo cobriam e o exotismo das nativas do pacífico sul passava pela sua nudez, imortalizada na tradição europeísta pela pintura de Gauguin. Nisso a beleza exótica de Dejah Thoris é o pináculo do género, capaz de gerar palpitações nas gerações de corações adolescentes dos primórdios do século XX. A Princess of Mars está disponível para leitura no Projecto Gutenberg em vários formatos de livro digital.