domingo, 30 de dezembro de 2012

Lord Of Light



Roger Zelazny (2004). Lord of Light. Nova Iorque: EOS.

Tornar-se um deus é uma boa forma de se manter no topo da pirâmide social, como na antiguidade os faraós egípcios e os imperadores romanos já tinham percebido. A tripulação de uma nave geracional encontra a forma perfeita para se manter como a classe dominante num planeta distante, colónia de uma Terra esquecida e talvez desaparecida. Negando aos colonos e seus descendentes os benefícios da tecnologia, assumem-se como entidades divinas utilizando aparatos tecnológicos como símbolos de magia sobrenatural. Das mitologias possíveis que estes tripulantes poderiam escolher a selecção recai sobre o hinduísmo. Quase imortais graças a tecnologias avançadas de transferência de consciência, todo-poderosos graças a equipamentos que os descendentes de colonos não dispõem, estes falsos deuses reinam sob um planeta moldado à sua medida. Controladores das máquinas de reencarnação, garantem a pureza ideológica da população. Esmagam quaisquer ressurgimentos tecnológicos pela raiz, não hesitando em arrasar cidades inteiras por heresias como a invenção da impressão, canalização ou lentes. Feitos tecnológicos são mistificados como mitos. Guerras assumem a forma de epopeias heróicas e a quase aniquilação da população nativa do planeta é mitificada como uma luta entre deuses e demónios.

Mas Sam, um dos falsos deuses, pensa de forma diferente. Vive no meio da população e vai espalhando uma mensagem de paz e inconformismo que lentamente toma raízes. Provoca dissensões no seio da casta deificada que reina. Encontra aliados entre os demónios. E provoca convulsões que abalam a ordem estabelecida e propiciam finalmente a possibilidade de progresso tecnológico humano. O triunfo final não é uma absoluta vitória da liberdade sobre o misticismo, antes uma difusa aliança entre forças opostas para proveito mútuo. Pregador do budismo como pedra na engrenagem deísta, sem planos definidos mas muito talento para desenrasque em situações bicudas, Sam é um dos tripulantes originais que, inconformista, luta de forma assimétrica contra o poder ilegitimamente estabelecido sob a capa do obscurantismo religioso.

Sátira anti-misticista sob a pele de obra de ficção científica, Lord of Light caracteriza-se por uma extraordinária fluidez linguística que mistura elementos míticos com tecnológicos e o banal com o sagrado. História circular, repetindo o ritmo dos ciclos místicos orientais, mergulha-nos num mundo onde os mais fantásticos aparatos sobrenaturais são tecnologias descrita sobre outro ponto de vista, os deuses adoram pausas para um cigarro, a promessa pós-humanista de imortalidade digital e migração entre corpos artificiais se consuma como um ciclo de reencarnações e quem desagrada aos poderes instituídos acaba reencarnado como criatura não humana e as résteas de uma facção cristã dominam hordes de zombies. Típico de uma obra de Zelazny, os trocadilhos linguísticos elegantes sucedem-se com um ritmo de sagacidade bem humorada.