quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Argumentos Válidos

Uma das coisas mais interessantes na liberdade de expressão à portuguesa é que embora ela exista, não é supostamente aplicável. Há coisas que no país dos brandos costumes não é suposto dizer-se, e pode-se pensá-las enquanto não houver tecnologia que penetre nos mais íntimos pensamentos. Se as expressarmos não somos encostados à parede e fuzilados, mas as reacções de quem não gosta de ideias que ultrapassem o consenso do que é aceitável são um equivalente verbal ou escrito de balas disparadas em fúria. Veja-se o caso dos comentários de Saramago sobre a bíblia. Por cá a religião é um daqueles assuntos sobre os quais a opinião generalizada deve obedecer a um certo consenso que não ultrapasse muito os limites estabelecidos. A religião católica, que nas outras pode-se zurzir à discrição. As reacções foram... divertidas de ver, ouvir e ler. Desde padres a acusar o escritor de senilidade a eurodeputados que quase se confessam envergonhados por serem tão portugueses como Saramago. Se as palavras fossem balas, nestas horas desde o comentário já Saramago tinha sido encostado ao muro da opinião pública e fuzilado umas centenas de vezes.

A questão fundamental não é a de concordância ou não com as opiniões, do escritor ou a de outros. É a capacidade de resposta que revelamos, ou falta de, a ideias e opiniões que por ultrapassarem o esperado e a mediania nos chocam. Mas liberdade de expressão é mesmo isto: aceitar o chocante e reagir com argumentos e não com resmungos que traem sentimentos interiores de vontade de proibição de afirmar ideias incómodas... ao regime, à moral ou aos bons costumes. Mas este é um traço que teima em perdurar na sociedade portuguesa, resquício de tempos totalitários ainda bastante recente. Diga-se o que se disser, historicamente habituados às cangas da monarquia e da inquisição, e mais recentemente ao fascismo (de brandos costumes), a verdade é que os portugueses não têm nem desejam ter uma cultura de liberdade. Basta prestar um pouco de atenção no dia a dia para perceber como os traços totalitários são apreciados.

(Já agora, apesar de ser ateu não partilho muito da opinião de Saramago. Até a acho um livro divertido: tem batalhas, cataclismos, sexo, e lá mais para o final zombies, acontecimentos sobrenaturais e visões de fazer inveja ao lsd. É divertido, como todos os textos mitológicos são. E é isso que é o livro é: a base da mitologia cristã. Quanto a respeitos, liberdade acima de tudo, e respeito tanto um crente na bíblia como um crente no Épico de Gilgamesh (se bem que destes já não restem nenhuns). Cada qual tem o direito de acreditar no que quiser, e os deveres de aceitar as crenças alheias e defender as suas com argumentos.)