segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Magalhães (II)


Classmate/Magalhães in the wild.

Correndo o risco de soar a velho do restelo, coisa que não sou, tenho a péssima sensação de que o Magalhães é uma aposta perdida. Não digo isto pelas razões habituais. O argumento de que os professores são resistentes à mudança, em particular os do 1º ciclo, é válido mas não primordial, desde que se espere que a mudança ocorra ao longo do tempo e não no imediato. O argumento de que entregar computadores a crianças é inútil é um argumento totalmente inválido, que revela cegueira sobre as mutações sociais e económicas que moldam a sociedade contemporânea. O computador é a ferramenta essencial da sociedade de informação, em que, melhor ou pior, já vivemos, e retardar a sua massificação é assegurar que largas camadas da sociedade ficam em desvantagem para agir na sociedade do conhecimento. Aliás, esta iniciativa já tem pouco de novo: há anos, paricamente uma década, que Nicholas Negroponte do MIT, com o projecto One Laptop Per Child, tenta convencer o mundo de que a introdução do computador nos escalões mais jovens é essencial para provocar verdadeiras revoluções económicas a logo prazo. O meu argumento prende-se mais com visões comerciais de curto e longo prazo, que privilegiam algumas empresas, criadoras e distribuidoras de ferramentas digitais, sobrepondo-se às visões pedagógicas que à partida seriam as que estão a orientar um projecto tido como pedagógico.


O OLPC XO, para comparar...

A máquina em si é respeitável. Não é um OLPC XO, mas tem vantagens em termos de especificações. 1 ghz de RAM e disco rígido de 20 Gb são boas especificações para uma máquina que está entre o computador portártil e o netbook. As adaptações de design feitas a pensar nas crianças, sem terem a beleza do XO, são funcionais: a pega permite uma verdadeira ultraportabilidade, sendo muito fácil transportar o Magalhães quer aberto, quer fechado. Debaixo do chassis esconde-se uma enorme resistência: nas recentes jornadas de formação a que assisti em Lisboa, um dos técnicos da JP Sá Couto fez o impensável: atirou um Magalhães ao chão, enquanto a máquina arrancava... e nada se passou, a máquina continuou o processo de arranque. Isto é possível graças a uma enorme protecção do disco rígido e outros elementos essenciais da máquina.

O ecrã tem uma resolução decente, apropriada para o sistema, embora não tenha uma grande visibilidade em condições de luz natural. Falta aqui um dos pormenores do XO, o seu ecrã policromático que em condições de luz natural se torna monocromático, permitindo visibilidade em todas as condições. A bateria dura cerca de duas horas, sem truques de maior, mas falta aqui mais um pormenor do XO: uma forma de gerar energia. O XO, concebido para países do terceiro mundo, inclui uma alavanca para girar, gerando energia para a máquina funcionar em locais onde não há acesso a electricidade. Isso pode não parecer um problema em Portugal, mas imaginem uma sala de aula com vinte computadores e poucas tomadas eléctricas e percebem onde é que eu quero chegar. A conectividade inclui adaptor de rede ethernet (não testei), wifi (essencial para aplicações de e-learning/classroom management). Falta uma porta VGA para ligar a projectores, mas é possível fazê-lo através de um sistema que francamente não consegui perceber (mas funciona).

Em resumo, o Magalhães/Classmate copia com fidelidade o conceito do OLPC, incorporando as tecnologias desenvolvidas pelo MIT e parceiros (um dos quais foi, durante algum tempo, a Intel, promotora dos Classmate). Copia, e sem restrições, porque o projecto OLPC optou por não colocar restrições de propriedade intelecutal às tecnologias desenvolvidas no âmbito do projecto. A ASUS, que criou um nicho de mercado com os ultraportáteis de baixo custo Eee (tecnologia derivada dos OLPC), agradece, e a Intel também, concorrendo directamente com o MIT através do projecto Classmate. O computador em si é um netbook competente, muito capaz nas mãos das crianças (assim se espera) mas não só. No mercado, pode ser um concorrente de peso aos Eee, Acer Ones e restantes netbooks, em particular pelo pormenor do disco de 20 Gb. A contrapartida industrial, de montagem e comercialização por uma empresa portuguesa, também é interessante.

O Magalhães falha ao nível do software. Ao contrário do OLPC, cujo sistema operativo, denominado Sugar, está desenvolvido de raíz para utilização pedagógica e trabalho colaborativo, centrado no utilizador, o Magalhães traz dois sistemas operativos: o Windows XP e o Linux Caixa Mágica.


Classmate/Magalhães em Windows XP Magic Desktop.

O Windows XP aparece em dois sabores. Arranca num modo amigável para as crianças, cheio de ícones coloridos e imagens direccionadas ao público infantil, o chamado Magic Desktop. Aqui tem um pormenor interessante: algumas das aplicações, desenvolvidas para crianças, dependem de um aplicativo que funciona como um caderno de apontamentos, que permite guardar jogos, videos, sons e textos, produzidos pelas crianças. O browser de internet é uma variante colorida do Internet Explorer, cheia de cor e com fortes bloqueios de funcionalidades. Com um simples clique acima do menu iniciar muda-se para o Windows XP tradicional, sem quaisquer adaptações. Em termos de segurança, podemos contar com o sistema de contas (isto caso os pais ou professores se disponham, ou saibam, criar contas de administrador para si e contas de convidado para as crianças, evitando instalações indesejáveis ou desconfigurações críticas do sistema). O Magalhães traz consigo um sofrível software de controlo parental, complexo de usar, que permite bloquear sites indesejados e programas do computador. Nesta segunda hipótese, abre no primeiro arranque na pasta Sistema do Windows, o que me levou a pensar, quando o testei, no que aconteceria se bloqueasse a execução de programas críticos do Windows. Não fui maquiavélico, mas alguém há de o experimentar. Este bloqueio de programas destina-se ao controlo, por parte dos pais, das aplicações que os filhos utilizam, como jogos, aplicações de chat ou web. Através dos logs, temos acesso a todos os usos dados à máquina. O programa também permite o controlo do tempo passado ao computador. O problema é a complexidade de execução destas tarefas.


Linux Caixa Mágica

Arrancando com o Caixa Mágica, desilusão. Apesar de a versão Caixa Mágica Mag ter sido desenvolvida a pensar nas crianças, está anos luz aquém do Sugar. Ao arrancar o Caixa Mágica, o ecrã divide-se em acesso rápido às aplicações mais úteis. A partir deste pormenor, tudo se normaliza. A desilusão é em termos pedagógicos, entenda-se. Quanto ao Caixa Mágica em si, fiquei muito interessado nos potenciais deste flavour Linux português. Ando a pensar pachorrentemente em testar o Ubuntu, mas se calhar vou tentar primeiro o CM. Gostei do que vi relativamente a este SO, mas penso que foi uma adaptação para o hardware e não criado a pensar na criança como utilizador. E daí, posso estar enganado. Talvez esta questão dos SO seja secundária. Todos já vimos crianças a usar sem problemas as versões dos sistemas operativos mais comuns.

E como funciona o Classmate/Magalhães no ambiente a que está destinado, a sala de aula? Para isso, dispõe de uma aplicação poderosa de e-learning/classroom management, o Mythware. Através deste aplicativo, o professor tem acesso a todos os computadores da sala, com comunicação síncrona e assíncrona, arranque remoto de programas (o professor pode decidir que todos os alunos, ou alguns, utilizem um programa específico e remotamente arrancar esse programa nos computadores dos alunos), controle das máquinas e geração de questionários. O Myhtware depende de uma LAN sem fios para funcionar. Mas este é um dos muitos usos pedagógicos que o computador pode ter.

Quem se dedica a estas coisas da tecnologia digital na sala de aula sabe que a killer app do computador é o trabalho colaborativo. Isto implica mudanças na pedagogia utilizada pelos professores, da mais tradicional pedagogia directiva a pedagogias não directivas, aquilo que os especialistas apelidam de transição de pedagogia sage on the stage para uma pedagogia guide on the side. O computador potencia o trabalho orientado por projecto e situações grupais, em detrimento de técnicas pedagógicas mais instrucionistas. Encontrar ideias e formas de explorar o Magalhães na sala de aula será um enorme desafio, que não se resolve em pouco tempo. O processo logístico de colocação das máquinas nas mãos das crianças está a ser rápido. O processo de exploração do potencial educativo da máquina ainda mal começou. Mas não critiquem se verem o Magalhães a ser utilizado como um processador de texto. As pedadogias são ferramentas, não credos a serem seguidos com zelo religioso, e o computador é uma ferramenta que permite muitas abordagens. O meu conselho (se de alguma coisa valer) aos meus colegas professores é este: experimentem, usem com os alunos das formas que vos forem mais confortáveis. Mesmo que seja todos os alunos, cada qual no seu computador, a consultar o mesmo documento. Sei que isto soa a heresia, mas as revoluções não se fazem por decreto, e a criatividade nunca parte do zero. Com acesso à internet, o Magalhães já permite uso de webquests, aplicativos online (o blog ICT in my Classroom é uma excelente fonte de ideias) ou visualização de conteúdos. A câmara incorporada do Magalhães e as suas capacidades de captação de som são óptimas para trabalhos de projecto. E de certeza que irão surgir aplicações inovadoras. Mas o essencial é pensar o Magalhães (e, por extensão, qualquer computador) como um bloco de notas da era digital, sem o santificar como uma máquina milagrosa que só deve ser utilizada de algumas formas esotéricas. A vantagem do Magalhães é estar concebido para ser usado e abusado. Literalmente.

Em conclusão, uma nota negativa. O Magalhães está intrísecamente ligado ao lado comercial da informática. O hardware é Intel, e o software predominante é Microsoft. Nas jornadas de apresentação do Magalhães, os responsáveis da Microsoft estavam alegres. Pudera. Com este projecto, acabaram de ganhar uma clientela cativa de meio milhão de utilzadores, treinada desde a mais tenra idade para preferirem produtos microsoft. Mas talvez esta seja uma visão prematura. Só o tempo dirá que novos usos as crianças que utilizarem o Magalhães farão das ferramentas digitais. É este imponderável que revela o melhor do projecto: uma visão de futuro a longo prazo, que cria condições para que as crianças de hoje sejam os criadores de amanhã. Mesmo assim, apesar de gostar do computador Magalhães e me resignar ao software, ainda preferia que o governo português tivesse optado pelo OLPC XO. A visão conceptual é muito diferente. Mas o dinheiro tem voz tonitruante.