Confesso que raramente leio os boletins informativos do sindicato a que pertenço, para além de uma diagonal informativa. Pergunto-me para quê tanto papel, quando o conteúdo destes boletins poderia chegar aos professores associados através de correio electrónico. Mas enfim, as tradições são difíceis de quebrar.
Hoje não resisti a ler um artigo a atacar as iniciativas do Plano Tecnológico (das poucas coisas boas que este governo tem feito, e mesmo assim com reservas sobre a isenção de certas medidas, que parecem favorecer determinadas empresas). O artigo não atacava directamente o plano, antes insurgia-se contra recentes declarações de Carlos Zorrinho, coordenador do plano, que se mostra defensor de ambientes escolares multitarefas, capazes de acompanhar os ambientes cognitivos fragmentados mediados por ferramentas tecnológicas em que as crianças de hoje - cidadãos de amanhã, vivem.
Não há muito de novo nestas declarações de Zorrinho. Já McLuhan, nos anos 60, e Papert, nos anos 80, falavam desta necessidade de adaptar a instituição escola, ainda a funcionar em moldes apropriados ao século XIX, às necessidades reais de um ambiente social mediado pela tecnologia, em particular pelas tecnologias de informação e comunicação, que trouxeram consigo uma revolução perceptiva na nossa forma de ver o mundo e a sociedade. Castells, ao propor uma sociedade de conhecimento, fala do poder da rede e da necessidade de formar indivíduos cada vez mais capazes de desempenhar múltiplas tarefas, de lidarem e manipularem informação, o bem-chave da nova economia. A escola, com o seu ênfase em modos de pensamento sequenciais, herdeira da lógica iluminista (esta própria uma revolução perante os antigos métodos escolásticos), mostra sérias dificuldades em criar modos de trabalho que respondam às novas formas de pensamento geradas pelo impacto da tecnologia.
É verdade, e todos sabemos isto: temos uma escola sublimemente adaptada às necessidades do século XIX, às necessidades das sociedades industriais. Esta transição pós-industrial, em direcção ao digital que correntemente vivemos representa um enorme desafio conceptual à ideia de escola. As mudanças são inevitáveis. Mas estamos nos primeiros momentos de mudança de rumo numa lenta instituição. Estes primeiros momentos são sempre caracterizados por desconfiança, por medo (em particular, medo do que não se conhece), por um reforço quase fundamentalista nos antigos valores, considerados seguros.
Por outro lado, o atirar de cabeça não é muito boa ideia. Há que reflectir, sem medo de arriscar mas sabendo o que se está a fazer. Atirar tecnologia para a sala de aula não é uma boa ideia - junto com os equipamentos, têm de vir ideias e estratégias de uso. Idealmente, caberia aqui o trabalho do professor, e muitos já o fazem. Infelizmente, a desconfiança impera, ajudada por incidentes como o abuso mediatizado de ferramentas tecnológicas que tornaram impossível, a curto prazo, pensar sequer em falar do telemóvel como ferramenta educativa.
Este artigo, Zorrinho o disruptor, é um caso típico de olhar para o retrovisor: a famosa expressão de McLuhan que indica que avaliamos os impactos de novas tecnologias de acordo com os paradigmas de velhas tecnologias. Perante as declarações provocatórias (intencionalmente, certamente) de Zorrinho, o autor prefere desvalorizar tecnologias ao estatuto de gadgets inúteis que acusa sem comprovar de serem fomentadores de défices de concentração, levanta o fantasma do fim da leitura observando que os jovens lêem cada vez menos (é falso, lêem cada vez menos livros, mas manipulam cada vez mais informação que sem alfabetização seria impossível de manipular), e evoca o eterno espectro da indisciplina - porque, como bem se sabe, sem equipamentos electrónicos os alunos são disciplinados, porque uma folha de papel não serve para criar aviões ou passar bilhetes, porque uma caneta não serve para rabiscar ou desenhar enquanto o professor expõe, ou para escrever mensagens insultuosas. É a tecnologia que estraga tudo. Insurge-se também contra a ideia de que a escola forme cidadãos criadores de valor, regressando à ideia romântica de formação de carácter quando ambas são importantes. É de relembrar que o conhecimento tem tendência a florescer em sociedades prósperas, onde a criação de valor permite tempo para a reflexão e criação de conhecimento.
O fim da leitura é tema quente e ambíguo. Estamos, talvez, a viver tempos semelhantes aos que se viveram na transição das sociedades orais e restritamente literatas da idade média para a sociedade literata baseada na tecnologia de Gutenberg, que reestruturou modos de pensamento, legando-nos o modo de pensamento em que actualmente se baseia a escola, e que provocou enormes reaçcões sociais (um exemplo, a reforma/contra-reforma que cindiu a igreja, impossível sem um acesso a textos impressos). Vivemos hoje uma transição em direcção a um novo modo de organizar informação, apontado como hipertextual, baseado em nós de rede e saltos, que colige fragmentos em todos coerentes. Na verdade, a hiperligação é mais do que uma simples ligação entre documentos. É uma forma de pensar, e não tão nova ou revolucionária quanto isso. Sempre pensámos, intuitivamente, por associação. Dispomos finalmente de tecnologia que nos permite implantar esse modo de pensamento nos media à nossa disposição.
Da leitura deste artigo concluo que o autor revela um profundo desconhecimento (que é sistémico) dos reais impactos das tecnologias digitais na sociedade. Revela igualmente falta de reflexão em formas de utilizar tecnologias na sala de aula, sendo mais simples a opção pelo reforço de antigos conceitos de concentração e reflexão. Essencialmente, revela medo, medo decorrente da incompreensão das profundas mudanças que estão a ocorrer à nossa volta. Nem todas as mudanças são positivas, o que reforça a necessidade de intervenção - mas de intervenção informada, não de retrocesso.
O artigo termina com um reforço da ideia de "criar uma escola formativa, que eduque os estudantes para os valores da cidadania e da responsabilidade e valorize o trabalho, o esforço e o empenhamento". Ideias nobres, que também subscrevo. Falta, em conclusão, um como, ideias e estratégias que possibilitem agir de acordo com estes princípios. É defeito comum a grande parte do pensamento educativo português, sempre tão preocupado com os grandes conceitos mas muito estéril em ideias práticas.
Deixo aqui um link para uma versão digital do artigo. Em discussões é sempre bom ver os diferentes pontos de vista.
Veiguinha, Joaquim (2008). Zorrinho o disruptor. Escola Informação. nº 222, Abril/Maio de 2008. p:20. Lisboa: SPGL
Leituras de McLuhan (The Medium is The Message, War and Peace in the Global Village), Manuel Castells (A Galáxia Internet), Seymour Papert e Anthony Giddens (O Mundo na Era da Globalização).