domingo, 19 de agosto de 2007

Vento de nenhures

Dias com o de hoje, em que lá fora só se ouve o rugir do vento, trazem-me imediatamente à memória um dos romances-catástrofe de J. G. Ballard, The Wind From Nowhere, em que uma poderosa ventania varre literalmente a humanidade da face do planeta, excepção feita a um multimilionário megalomaníaco que decide enfrentar a força da natureza com uma pirâmide de aço, que, claro, é levada pelo vento. Assim que esta última vã esperança da humanidade é, literalmente, varrida pelo vento, a ventania diminiu, torna-se leve brisa, e os homens saem dos seus abrigos para reconstruir a civilização.

Falo, claro, de J. G. Ballard nos seus bons velhos tempos, após a sua fase de composição de contos de ficção científica que são pequenas pérolas de perfeição imaginativa e literária, como Chronopolis, cheia de imagens oníricas de metrópoles abandonadas e relógios. Nos seus romances-catástrofe, obras como The Wind from Nowhere, The Crystal World, The Burning World e The Drowned World, onde forças naturais destroem de forma catastrófica as construções e as obsessões das civilizações humanas. Destes livros, o que mais assombra a memória é The Drowned World, com as suas descrições na prosa de clareza surreal de Ballard de um mundo, literalmente, afogado, de cidades semi-submersas em pântanos devido à subida das àguas, onde o verde da vegetação luxuriante se entrança nas janelas e cornijas, onde homens obcecados coexistem com cientistas num jogo puramente humano passado nos andares superiores de edifícios de luxo semi-submersos. Onírico, com uma prosa que me faz recordar frottages de Max Ernst (especialmente A Europa depois da chuva e O Olhar do Silêncio), e perigosamente clarividente, se acreditarmos (o que é inevitável) nas previsões mais benignas dos cientistas em relação aos efeitos do aquecimento global.

J. G. Ballard é um pouco mais diversificado do que estas fases. Abordou um apocalipse pop-cultural de ogivas, sexo enquanto geometria e as intersecções sangrentas das vidas mitificadas dos famosos em obras como The Atrocity Exhibition, livro não linear quanto baste. Explorou a facilidade com que a patine civilizacional se esboroa, revelando o animalesco que reside na alma humana, em obras como High Rise ou Running Wild. Explorou a intersecção da solidão no meio das multidões com a obsessão e a monomania em obras como Concrete Island. Explora agora uma visão de glamour decadente em livros como Super Cannes e Cocaine Nights Tornou-se conhecido do grande público graças ao cinema, com as adaptações do romance semi-autobiográfico O Império do Sol por Spielberg e a marcante adaptação de Crash por David Cronenberg, que respeitou com uma precisão alucinante a clareza surreal da visão de Ballard.

O conto Low Flying Aircraft, apocalíptico pós-futurista decadente (uma das marcas da ficção de Ballard), foi, curiosamente, filmado em portugal por Solveig Nordlund (a mais nórdica das realizadoras portuguesas) com o título de Aparelho voador a Baixa Altitude classificando-se como um filme de FC português, coisa mesmo muito rara.