quarta-feira, 8 de agosto de 2007
American Gods
Neil Gaiman, American Gods, Harper Collins, 2001
Only the Gods are Real
American Gods
Wikipedia | American Gods
A ideia de viagem é uma constante na obra de Neil Gaiman. Subjacent às histórias que conta, aos seus romances e argumentos de comics, está esta ideia de quebrar a estabilidade e iniciar um percurso, viagem que ultrapassa a mera descoberta de novos locais. É antes a viagem como percurso, com o seu quê de iniciático, em que a paisagem exterior e as peripécias são metáforas do mundo interior dos personagens, da sua auto-descoberta e da jornada de transformação em direcção a um novo eu.
Basta-nos rever algumas das obras deste autor para encontrar este padrão. Em The Sandman, obra incontornável de Gaiman, somos levados ao longo dos seus arcos de história numa viagem interior que termina irremediávelmente na aniquilação do personagem. Em Stardust, uma viagem através de um mundo de fantasia simboliza a passagem até à idade adulta, uma passagem que não renega a magia e o sonho a favor das praticalidades do dia a dia. Neverwhere mostra-nos o submundo como um espelho da alma humana, esmagada debaixo do peso da rotina, e torna-se necessário descer ao submundo para recuperar a humanidade. Em Anansi Boys, a viagem é uma de descoberta interior das raizes da alma humana.
American Gods estrutura-se como um road movie. Sei que falamos de um livro, mas a comparação é inevitável. American Gods é um On The Road à maneira do fantástico, onde as personagens vagabundas de Kerouac são substituídas por deuses desvanecidos. A obra centra-se na middle america, o vasto território entre as mais culturalmente mais exploradas costas. Imensas são as obras que giram à volta de Nova York, S. Francisco, Chigago e tantas outras grandes cidades. Mas o vasto midwest, terra de paisagens longínquas entrecortadas por estradas em linha recta que ligam pequenas cidades isoladas debaixo do profundo céu azul, é menos explorado. Não quer dizer que o não seja, e bibliófilos mais conhecedores certamente que me irão apontar muitas obras que se passam precisamente na middle america.
Em American Gods, seguimos a viagem iniciática de Shadow, obscura personagem indefinida que após passar uma temporada na cadeia nada mais quer do que regressar à sua vida, à sua mulher e ao seu trabalho. A saída da cadeia é estragada pela notícia da morte da sua mulher. Aturdido, Shadow desloca-se à sua cidade, descobrindo o que realmente aconteceu enquanto esteve preso (digamos que a mulher não lhe foi muito fiel, infidelidade registada no acidente de automóvel que a vitimou e ao seu melhor amigo). À deriva, sem laços que o prendam, Shadow é contactado por Wednesday, estranho homem que lhe oferece um emprego um pouco diferente.
Wednesday é um homem de estranhos poderes, um deus que luta contra o apagar dos velhos mitos da psique humana. Para isso, Wednesday joga um jogo perigoso, criando uma luta entre velhos e novos deuses, entre os deuses esquecidos das antigas tradições trazidas à américa pelas sucessidas vagas de imigração, e os novos deuses dos media e da tecnologia, ciosos da sua supremacia e do seu poder. A luta é sangrenta, mas... sem revelar mais, digamos que Wednesday é um refinado vigarista, especialista em manipulações e distorções, como convém ao velho deus nórdico Odin que é.
Shadow nada mais pretende do que regressar ao seu lar e à sua esposa, um Ulisses deste romance fantástico, mas Wednesday mergulha-o num mundo de mito e magia, levando-o a descobrir ideias esquecidas, poderes arcaicos, segredos refinados e mistérios que não passam de truques ilusórios nas mãos de ilusionistas consumados.
Leitores atentos de The Sandman certamente que se recordarão que um dos livros da biblioteca de livros sonhados tutelada pelo bibliotecário Lucien era The Man Who Was Wednesday de G.K. Chesterton, alusão à obra real do mesmo autor intitulada The Man Who Was Thursday. Não é a única alusão presente nesta obra a The Sandman. Por entre os panteões de deuses, é impossivel não reconhecer Delirium, uma das personagens principais de The Sandman.
Comum à obra de Gaiman é a tessitura de histórias que o autor tece no enredo dos seus romances. American Gods é mais do que uma simples história de guerras divinas ou de viagens por uma mítica américa. Está recheado de detalhes, pequenas histórias dentro da grande história, pormenores aparentemente desconexos mas que acabam por se revelar parte integrante do todo mítico do romance.
Quanto às personagens, a imaginação tão própria de Gaiman anda aqui no seu melhor. Para além dos clássicos deuses nórdicos, temos personagens delirantes saídos dos mais rebuscados panteões míticos. Sanguinolentos deuses russos, criaturas míticas irlandesas, psicopompos egípcios a viver uma nova vida como cangalheiros (a fina ironia de Anubis, agora conhecido com Mr. Jacquel, soando vagamente a chacal, dono de uma agência funerária em Cairo, Mississipi). Zombies com estranhos poderes. Novos deuses do mundo digital, da televisão e dos transportes. Ultra-secretas agências governamentais. Cidades com segredos tenebrosos. E, ocultos por detrás da paisagem, os arquétipos da américa, os pássaros-trovão e os búfalos, símbolos da natureza bravia do continente americano. A página Only The Gods Are Real tenta listar todos os deuses que Gaiman faz aparecer no palco do livro.
O livro revela-se num momento puramente iniciático, em que Shadow, enforcado na àrvore da vida aos pés de um deus morto, literalmente renasce, descobrindo-se a si próprio. Está aí a chave do livro, a ideia de viagem levada ao extremo, o soltar de amarras levado ao renascimento como ser e indivíduo.
American Gods não é uma das mais leves obras de Gaiman. Falta-lhe o optimismo mágico a que Gaiman já nos habitou. Mas a profundidade de pesquisa por detrás do romance, o convuluto mas sempre interessante enredo, o leve toque shakespeareano da prosa de Gaiman, tornam American Gods numa leitura imparável, daquelas leituras em que só descansamos quando viramos a última página, ficando sempre com um gostinho que nos leva a desejar ler um bocadinho mais. E, de certa maneira, continua. Anansi Boys recupera um dos mais idiosincráticos personagens deste livro, de uma forma hilariante.