segunda-feira, 21 de maio de 2007

Eurico, o Presbítero

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Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero, Círculo de Leitores, 1986

Wikipédia | Alexandre Herculano
Eurico, o Presbítero
Projecto Vercial | Eurico, o Presbítero

O sibilar das rajadas também cessou completamente. Parado sobre a face da terra, o ar era semelhante ao lençol do finado a quem recalcaram a gleba que o cobre, frio, úmido, pesado, sem ranger, sem o movimento, cosido sobre o peito, onde acabou o bater do coração e o arfar compassado dos pulmões.
Então, muito ao longe, uma vermelhidão tenuíssima foi avultando pouco a pouco, derramando-se pelo horizonte e repintando a abóbada imensa dos céus.
Depois, esse clarão sinistro reverberou na terra: as cimas agudas, dentadas, tortuosas, alvacentas das fragas marinhas tinham-se abatido e livelado, como os cerros informes de neve amontoada, que, derretidos nos primeiros dias do estio, vão, despenhando-se, formar um lago chão e morto na caldeira mais funda do vale fechado.
Tudo a meus pés era um plano uniforme, ermo, afogueado, como a atmosfera que pesava em cima dele: e, além, jazia o cadáver do mar.
Eu, o Silêncio e a Solidão éramos quem estava aí!


Alexandre Herculano foi uma das figuras maiores do século XIX português. Escritor e historiador, Herculano também se distingiu pela sua participação nas convulsões políticas da atribulada primeira metade do século XIX. Como romancista, Herculano legou-nos o romantismo, corrente literária que galvanizou a europa do século XIX e que Herculano introduziu em Portugal através dos seus romances históricos. Como historiador, o romance histórico seria uma extensão lógica, e os seus romances distinguem-se quer pelo seu rigor histórico (dependente dos conhecimentos da época) quer pelo seu carácter profundamente medievalista. Herculano buscava as raízes da portugalidade, procurando a confluência histórica dos primeiros tempos da nação, mitificando-a através da sua prosa rebuscada e hiperbólica, típica do cânone romântico.

- Cristo e avante! - bradaram os godos: e os esquadrões de Roderico precipitaram-se ao encontro dos muçulmanos. São como dois bulcões enovelados, que, em vez de correrem pela atmosfera nas asas da procela, rolam na terra, que parece tremer e vergar debaixo do peso daquela tempestade de homens. O ruído abafado e bem distinto do mover dos dois exércitos vai-se gradualmente confundindo num som único, ao passo que o chão intermédio se embebe debaixo dos pés dos cavalos. Essa distância entre as duas muralhas de ferro estreita-se, estreita-se! É apenas uma faixa tortuosa lançada entre as duas nuvens de pó. Desapareceu! Como o estourar do rolo de mar encapelado, tombando de súbito sobre os alcantis de extensas ribas, as lanças cruzadas ferem quase a um tempo nos escudos, nos arneses, nos capacetes.

Originalmente publicado em 1844.Eurico, o Presbítero é um romance histórico que vai beber a sua inspiração a uma época mais antanha do que a idade média portuguesa. A acção deste romance de perder o fôlego passa-se nos tempos da conquista da península ibérica, com os reinos visigodos que se ergueram após o império romano a cederem perante a força das armas dos exércitos mouros.

Eurico, o Presbítero narra a torturada história de Eurico, presbítero de Carteia, uma pequena aldeia à beira daquele que é hoje conhecido como o penedo de Tárique. Eurico nem sempre foi humilde e angustiado presbítero de paróquia isolada. Noutros tempos, tempos mais gloriosos e luminosos, Eurico fora outrora nobre e corajoso guerreiro ao serviço da coroa visigótica. Apesar de nobre, Eurico era homem de poucas posses, o que o obriga a um amor proibido com Hermengarda, filha da alta nobreza goda. Impedido pelo pai de Hermengarda, o amor de Eurico transforma-o. Abandona a vida da corte e do quartel, a vida da espada, e abraça a vida eclesiástica. Eurico é um presbítero amargurado, que consome a sua dor interior em cânticos poéticos exaltados e em longo passeios pela paisagem selvagem dos rochedos de Gibraltar.

Algo se pressente no ar, os ventos de tempestade levantam-se, uma onda abate-se sobre a Ibéria visigótica. Os exércitos àrabes invadem a península, aliados a facções que disputam a coroa visigótica. No meio deste turbilhão de sangue e chamas, do refulgir das espadas e dos confrontos destruidores entre ferozes exércitos, Eurico pega em armas. Os anos de sacerdócio não lhe haviam apagado o amor pela pátria. Na sua hora de maior perigo, Eurico não se recusa ao combate. Faz a sua aparição na mais decisiva das batalhas, a de Guadalquivir, onde o embate entre àrabes e visigodos culmina numa aterradora derrota que faz cair o reino visigodo. Factos históricos, aprendidos friamente nos bancos da escola, a que Herculano dá o sopro da vida, da grandeza, da traição, da violência e da morta em páginas de prosa grandiosa e apaixonante. Nesta batalha, Eurico é o misterioso cavaleiro negro, capaz de sózinho deter legiões mouras, e que vê desesperado a traição dos seus companheiros fazer cair a pátria pela qual tanto sangue derramou.

Eurico, o Presbítero é um romance desesperado. Séculos após a poeira apagar os traços das sangrentas batalhas, sabemos o que se passou, sabemos da queda dos reinos bárbaros às mãos mouriscas, sabemos das luzes da civilização do Al Andaluz, sabemos da queda desta às mãos dos reinos da reconquista cristã, saída directamente da resistência dos últimos nobres visigodos, refugiados nas altas serranias das astúrias. Eurico é um personagem da época, sublimemente retratado. Com a alma torturada pelo desgosto de amores, Eurico ainda acredita na sua pátria, mas cada novo embate, cada novo passo, trás consigo a derrota e a aniquilação. À boa maneira dos personagens românticos, Eurico trilha o caminho entre a loucura e o desespero, enquanto se ergue contra forças que são vastamente maiores do que a pequenez da sua humanidade.

- Dez anos! ... Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver? Sabes tu o que são mil e mil noites consumidas a espreitar em horizonte ilimitado a estrela polar da esperança e, quando, no fim, os olhos cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrela reluzir um instante e, depois, desfechar do céu nas profundezas do nada? Sabes o que é caminhar sobre silvados pelo caminho da vida e achar ao cabo, em vez do marco miliário onde o peregrino de tréguas aos pés rasgados e sanguentos, a borda de um despenhadeiro, no qual é força precipitar-se? Sabes o que isto é? É minha triste história! Estrela momentânea que me iluminaste, caíste no abismo! Arbusto que me retiveste um instante, a minha mão desfalecida abandonou-te, e eu despenhei-me! Oh, quanto o meu fado foi negro!

Hermengarda, a paixão de Eurico, é capturada por mouros após um tétrico momento, possívelmente a passagem mais perturbadora do romance, numa abadia em que as religiosas preferem a morte ao cativeiro. Eurico oferece-se para a resgatar, e consegue-o, numa operação heróica digna das maiores gestas de cavalaria, que culmina com um exército mouro às portas das serranias asturianas, onde Pelágio, irmão de Hermengarda, lidera a resistência à invasão àrabe (que mais tarde originará a reconquista cristã). Aí, nas profundezas das cavernas da montanha, Eurico revela o seu segredo a Hermengarda, apenas para se deparar com um obstáculo inultrapassável. Qualquer esperança de felicidade é anulada pelo sacerdócio, ao qual Eurico é tão fiel como ao seu amor por Hermengarda e ao seu amor pela pátria. Tolhido, desesperado, Eurico oferece-se à morte num combate desesperado, enquanto Hermengarda enlouquece.

Os sentimentos exacerbados são dominantes nesta obra atravessada por duas correntes profundas de fidelidade - a fidelidade à pátria e a fidelidade à religião, os grandes motores por detrás desta trágica história.

Este é um romance que tem dentro de si todos os ingredientes românticos. Todo o ambiente a oscilar entre o belo e o horrível, toda a exaltação de sentimentos e emoções, as descrições majestosas, que tiram o fôlego ao leitor, os cumes filosóficos de extremos incomensuráveis, o desespero do momento histórico escolhido pelo livro. Toda a prosa acompanha estes sentimentos, tornado Eurico, o Presbítero numa obra empolgante e apaixonante.

Aconselho vivamente a leitura desta obra. Quem não a conhece será certamente surpreendido, especialmente os amantes do fantástico ou do romance histórico, que encontrarão aqui prosa digna das mais empolgantes obras do género, embora em certos momentos com uma profunda erudição que a tornará complexa aos nossos olhos modernos. Não foi por acaso que escolhi deixar aqui tantas citações: queria que a obra falasse por si própria, gostaria que as palavras citadas apaixonassem aqueles que por acaso ou ventura se depararem com este texto e tenham a paciência de o ler até ao fim.

A minha edição é já antiga, uma velha edição do Círculo de Leitores que colige a obra completa de Herculano que li nos velhos tempos em que andava no sétimo ano (quando o meu professor de português da altura descobriu o que é que eu andava a ler admoestou-me que eram obras muito difíceis para a minha idade e que o mais importante era estudar pelo manual. Mandei-o às urtigas, claro, embora não verbalmente, o que naquela altura ainda me teria merecido um valente sopapo). Creio que as Edições Europa América têm algumas edições de obras de Herculano em formato de bolso. Desconheço outras, mas enfim, sou bibliófago, não bibliófilo. Pelo site do projecto gutenberg e na Biblioteca Virtual de língua portuguesa (um belíssimo site brasileiro que faz aquilo que o Vercial não faz - disponibiliza online textos electrónicos de autores lusófonos - o Vercial ainda acredita em CD-ROMs) encontram-se obras de Herculano em vários formatos electrónicos.

Como nota final, não deixo de notar como esta obra poderia dar um belíssimo filme. É um romance cavalheiresco sem elfos e orcs, mas cairia perfeitamente dentro do imaginário cinematográfico à volta do qual rondam filmes como O Senhor dos Aneis, Tróia ou Alexandre - filmes exaltantes, onde as emoções de antanho, quer da antiguidade real ou imaginária, se recontam em imagens apaixonantes. Mas, enfim, estamos em Portugal...