Ontem à noite dei por mim a caminhar sobre as luzes de neon dos corredores de um centro comercial daqui das redondezas (ou um tuganário, como um amigo, num rasgo de génio, apelida aqueles que são os verdadeiros centros culturais deste nosso futuro). O pretexto era uma rara saída ao cinema, que depressa se esfumou perante a absurda mediocridade dos filmes em cartaz.
Dei-me assim por acaso a entrar numa loja de roupa para crianças. Contemplei fieira após fieira de roupa infantil, e reparei que a principal diferença entre a roupa mais cara e a mais barata estava nas imagens estampadas na roupa. As imagens eram um catálogo de marcas, desde as inevitáveis persobagens da Disney - algumas tão absolutamente feias que decerto despertarão pesadelos nas mentes infantis - a filas de roupa com o Winnie the Pooh de A.A. Milne ou o ubíquo e anódino Noddy. Mas não se preocupem, não vou reflectir e resmungar sobre as traições da cultura comercial, popular e globalizante, que nos entra cérebro adentro debitada em enxurradas pelos ecrãs de televisão e imposta pelos interesses comerciais que estão por detrás das figurinhas de ar inocente.
Lembrei-me. No fundo, trata-se de uma questão de esperteza e promoção. Porque é que o comum papá português compra para a sua prole a camisolinha do Noddy (depressa se imagina uma legião de Noddys a fabricar t-shirts numa sweatshop na terra dos brinquedos)? Porque o rebento assim o exige, porque gosta, porque o viu na televisão e, naturalmente, com a intensidade e inocência inerente ao ser criança, o admira e sonha com os sonhos enlatados que vê no ecrã. Mas porquê o Noddy? Questão de marketing.
Francamente, também poderíamos estar a comprar roupa com a imagem estampada da Raposa Salta-Pocinhas, a raposinha mais fina, ladina e rabina da floresta, contada no Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro, livro que marcou a minha infância. Mas como não há desenhos animados da Salta-Pocinhas, não há promoção, não há marketing, não há vontade, trabalho e inteligência para explorar este ícone potencial, ficamo-nos mesmo pelo livro empoeirado que li tinha os meus seis anos, enquanto os meus colegas do primeiro ano se esforçavam por aprender o abecedário.
Fui ensinado a ler por volta dos cinco anos, à inglesa, por uma bem intencionada Vóvó, mulher que terá sempre um lugar querido no meu coração, antiga preceptora de crianças de boas famílias e que me ensinou segundo o método João de Deus. Décadas passadas, ainda me recordo de trechos da Cartilha Maternal. Claro que esta aprendizagem precoce, longe das maquinarias da aprendizagem pedagógica institucional, me incutiu um gosto pela leitura e pelos livros que por vezes chego a pensar que ultrapassa os limites do saudável. No meu primeiro ano de escolaridade a minha professora deve-se ter assustado - agora o que é que eu faço com este miúdo, deve ter pensado, mas depressa percebeu que eu não chateava, e ficava muito contente por desenhar no meu caderno diário as imagens das palavras que os meus colegas se esforçavam por soletrar. Deve ter sido aí que começou a minha dicotomia entre livros e lápis. Mas estou a divagar.
Estamos em Portugal. Aqueles que têm dinheiro para investir preferem fazê-lo no formato enlatado, pré-formatado e de sucesso garantido. Aqueles que têm talento, imaginação e criatividade preferem perseguir os seus sonhos pessoais (mea culpa, também, embora não seja nenhum génio da criação ou da animação, tornei-me, no fundo, um dilletante). O resultado são as agressivas promoções a produtos culturais anódinos, a que se podem chamar culturais apenas porque fazem parte da paisagem pop dos media, enlatados, metrificados, padronizados, plastificados. A autenticidade, a beleza da pura imaginação infantil, captada por tantos e tão bons escritores de tantos países, perde-se num mar de product placements. As crianças são os adultos do futuro. Certamente que merecem melhor.
Porque não um desenho animado da Salta-Pocinhas com todo o obrigatório mar de merchandising que é de rigueur hoje em dia? Pelo menos, seria um produto cultural nosso, algo da nossa personalidade a entrar no mercado de ideias mundial. E se gostam da coisa anglicizada, Puddle-Jumper pelo menos não tem a conotação da palavra Pooh... desculpem, mas pooh não é um termo inglês para... produtos orgânicos dos mecanismos do sistema digestivo que cheiram mal? Não necessitamos de ser fundamentalistas. Os aspectos da cultura popular podem coexistir. Dêem um pulinho a alguns recantos da blogoesfera e vejam como a cultura popular pode ser anos depois alvo de profunda nostalgia. Parece-me é profundamente estranho (para não dizer idiota) apregoar a nossa crença no mercado, na competitividade das nossas ideias... e depois esquecer o nosso substrato cultural. Com promoção, investimento e talento, uma Salta-Pocinhas ou um Kurika (bem, hoje é dia 25) poderiam ser uma afirmação cultural lucrativa nos media, coexistindo perfeitamente com toda a fabulosa galáxia de personagens infantis. Seria algo nosso. Nesta nova sociedade, que tantas contradições têm, a distinção já não está entre quem fabrica e quem não fabrica. A importância da nova economia alicerça-se sobre a criatividade, e a propriedade intelectual é determinante. Não interessa quem fabrica, interessa quem cria. As ideias são mais importantes que os objectos. E nós parecemos desperdiçar ideias.