Em última análise, a história dos Grandes Portugueses é um fait-divers de pouca importância. No fim de contas, trata-se de um concurso televisivo, que cumpriu à risca os seus objectivos - atrair atenções para maximizar as rendas da publicidade. Não é tão importante como isso, embora o resultado final nos diga alguma coisa sobre o nosso carácter como nação. Não tanto sobre o nosso gosto por jugos, mas antes pelo nosso gosto por figuras que o imaginário popular elege como salvadores da pátria, homens decididos que querem, podem e mandam. É um carácter sublinhado nas últimas eleições presidenciais, onde ganhou o candidato que o New York Times apelidou certeiramente de Saint Cavaco. Não creio que seja uma boa ideia tornear as nossas apreciações sobre o carácter nacional a partir do resultado de concursos televisivos.
Mas mesmo assim não consigo deixar de tentar imaginar no que pensavam aqueles que votaram no concurso, e deram a inevitável vitória à figura mais aberrante possível. Leiam as linhas que se seguem com um grão de sal. Tentei imaginar qual seria a cultura do português médio, forjada na cabulice das aulas e nas prédicas dos púlpitos televisivos, e cá foi disto...
António de Oliveira Salazar - Este sim, o verdadeiro bom português. Durante as curtas décadas do seu longo regime o país viveu uma época ímpar. Esses foram os bons velhos tempos, quando os senhores ainda eram senhores e não havia os desmandos da ralé de hoje em dia. Podia-se andar na rua em paz, porque ninguém nos incomodava. E havia sempre trabalho honesto para quem o quisesse. Dinheiro não era muito, mas também não era preciso, não havia muita coisa para gastar e ia sempre dando para amealhar uns tostões. Um homem às direitas, que punha as mulheres no lugar, que punha qualquer um no lugar. Nos tempos dele não havia cá nada dessas modernices da educação. Só era preciso saber as letras, os rios, as capitais e as estações de comboio. Para quê aprender outras coisas? Antigamente aprendia-se era coisas úteis. Depois da primeira classe os putos iam era aprender um trabalho honesto, não faziam com hoje fazem, ficar em casa a jogar computadores e andar na rua a fazer poucas vergonhices. Nos tempos do Salazar é que era bom. E aqueles tipos que dizem o contrário, que falam naquelas tretas da censura ou do tarrafal, são uns mentirosos. Toda a gente sabe que os da Pide eram boa gente. Amaldiçoada seja a cadeira de onde caiu...
Álvaro Cunhal - É comuna. É preciso dizer mais? Os comunas comem bébés ao pequeno almoço. Os comunas chegam a um sítio e dizem que tudo pertence a todos, ou seja, que aquilo que é meu deixa de ser meu. Os comunas são maus, nem sei bem porquê, mas se me dizem que são é porque são.
Aristides de Sousa Mendes - Quem? Ah, o dos judeus. Pois, deve ter sido boa pessoa, mas o Salazar é que tinha razão. Ele e o amigo dele, aquele da alemanha...
D. Afonso Henriques - Ele é que foi o pai da nossa nação? O fundador do país? É por causa deste idiota que eu não hablo español e não ganho como os espanhóis?
Luís de Camões - Parece que foi poeta. O professor de história falava muito dele, e o de português também. Deve ser boa pessoa, o Salazar gostava muito dele, que era um português a sério que ficou zarolho a combater contra os àrabes. Talvez tenham passado algum tempo juntos. Até parece que tem uma estátua em Lisboa, no largo do Camões. Será que o nome do largo tem alguma coisa a ver com este tipo?
D. João II - Foi rei e isso é coisa boa. Se Portugal ainda tivesse reis é que era. Éramos como a Inglaterra, ou a Espanha, ou o Lesotho, que não se sabe muito bem onde é que fica. Tem nome de país da Àsia.
Infante D. Henrique - Sem bem me lembro das aulas de história, este tipo parece que fundou uma escola e obrigou os marinheiros a irem para o meio do mar.
Fernando Pessoa - Num país com uma taxa de analfabetismo operante a rondar os quase cem por cento seria de todo irreal esperar que um português que se dedicou a escrevinhar coisas que ninguém lê seja considerado um grande homem. Ainda por cima escrevia como se fosse várias pessoas, o que não cabe na cabeça de ninguém. Como é que permitem que um inútil que passava a vida a escrevinhar seja considerado um grande português? Aqui nesta lista devem estar só aqueles que trabalham! Ao menos podia ter escrito para telenovelas, já seria qualquer coisa.
Marquês de Pombal - Também parece que era um homem às direitas, parece que foi ele que fez o terramoto do marquês de pombal e construiu as casas de Lisboa. É um grande homem, mas já morreu.
Vasco da Gama - Este parece que andou na Índia às turras com os índios e os cowboys, de barco. Mas é estranho, porque os desenhos que se vêem dele não têm o chapeu de cowboy.
A esta lista só faltam os nomes dos verdadeiros grandes portugueses: Pinto da Costa, esse grande senhor, Valentim Loureiro, esse injustiçado, Cavaco silva, homem santo que salvou a nação. Se não estão cá é por causa dos complots contra eles.