quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Blade Runner



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Wikipedia | Philip K. Dick

A Ficção Científica tem gerado inúmeras obras literárias marcantes, mas quando chegou ao cinema deu origem a poucos filmes marcantes. Talvez seja uma consequência do efeito Star Wars, com a sua ênfase nas aventuras implausíveis no espaço, ou o legado dos deliciosamente maus filmes de série B. Ou, talvez, o meio visual fique aquém da imaginação - as melhores obras de FC são aquelas que nos estimulam a imaginação, que nos levam a sonhar e a congeminar na nossa mente os mundos descritos pelo escritor. Mas o cinema, dependente do visual, retira-nos essas opção. Ao deslumbrarmo-nos com cenários de tirar o fôlego e conceitos visuais futuristas, quedamo-nos a admirar a beleza visual, e perdemos o prazer de imaginar.

Contam-se literalmente pelos dedos os filmes verdadeiramente marcantes de FC. Com filmes marcantes, falo dos filmes que sobrevivem a anos de revisitações, que após serem vistos vezes sem conta não perdem aquela frescura e aquele fascínio. Filmes de sucesso há muitos, mas a maioria dos filmes que nos enchem os olhos geralmente não sobrevive a uma segunda visualização. Entre os filmes mais marcantes de FC, saltam-me à mente os inevitáveis Metropolis, 2001, Dune e este Blade Runner. O que há de comum a estes filmes é o terem sido realizados por realizadores que não estão associados à FC. Fritz Lang, realizador de Metropolis conquistou o seu lugar na história do cinema pela sua mestria e inovação no uso dos planos fílmicos. Kubrick, que nos legou o apaixonante 2001, está associado à ideia de um cinema acutilante que reflecte sobre as profundezas da alma humana. David Lynch, realizador de Dune, é essa coisa rara - um auteur norte-americano, conhecido pelas suas bizarrias e que nos legou o mais estranho dos filmes de FC, que muitos consideram controverso assinalar como uma das obras-chave do género no cinema. E Ridley Scott, realizador de Blade Runner, é um criador de blockbusters, autor de obras tão díspares como Thelma e Louise ou O Gladiador, que têm no entanto em comum um singular sentido do visual, integrando o cenário como parte indispensável da narrativa (que o é) sem que esta se perca por entre o poder das imagens.

É este o aspecto que mais fascina em Blade Runner. O visual futurista, fruto da colaboração entre gurus da arte aplicada e dos efeitos especiais como Syd Mead, conceptualizador dos cenários futuristas, e Douglas Trumbull, génio dos efeitos especiais por detrás das imagens fascinantes de 2001. É este o elemento que nos apaixona pelo filme, os cenários minuciosamente detalhados, as visões quase dantescas de um mundo futuro, ultra-urbanizado, onde os fogos ímpios da indústria iluminam o céu negro de poluição. A cuidadosa conceptualização da sociedade futura originou a visualização de um mundo fascinante e verosímil, onde as tecnologias do futuro estão presentes mas não o condicionam - o velho e o novo coexistem no dia a dia, tal e qual como o fazem no nosso dia a dia. Filme dos anos 80, optou pela conceptualização do perigo japonês, projectando uma sociedade futura onde a estética asiática nipónica pervade o mundo americano. Se Blade Runner tivesse sido conceptualizado hoje, os cenários teriam mais a ver com uma chinatown do que com a eficiente mistura de arquitectura urbana americana com as visões de uma Tóquio utópica. Com a dose obrigatória de Metropolis, filme cujos cenários são uma referência obrigatória para Blade Runner.

O mundo é detalhado, cuidadosamente controlado para nos fazer entrar no mundo do filme, mas não visualiza um futuro utópico, limpo e positivo. A sublinhar a degradação permanentemente presente no filme está uma chuva recorrente, que torna mais sombrias as exóticas ruas da Los Angeles do futuro. Os acessórios futuristas, os carros voadores, as maquinarias, as armas, os veículos, não são visões aerodinâmicas de perfeição tecnológica, mas antes objectos disformes, cheios de protuberâncias inestéticas. O futuro é desolador.

Largamente baseado no romance Sonharão os Andróides com Carneiros Eléctricos da autoria do mais paranóico dos autores de FC, Philip K. Dick, Blade Runner força a estrutura do romance e o cenário futurista aos constrangimentos do film noir. Mais do que um filme de FC, Blade Runner é um filme policial, onde todos os elementos são determinados pelo futurismo.

No filme, Deckard é um ex-polícia especializado em caçar Replicantes, andróides indistinguíveis dos humanos cuja presença na Terra é proibida. Fruto dos avanços da engenharia genética, os Replicantes são máquinas biológicas destinadas a cumprir funções nos ambientes agrestes das colónias espaciais, sendo para todos os efeitos escravos dos colonos. Há apenas dois pormenores que distinguem estas máquinas dos seres humanos - a ausência de emoções e um tempo de vida curto, uma forma cruel de obsolescência planificada. Deckard é forçado a retomar as suas actividades como caçador de replicantes às ordens de Bryant, tendo como missão caçar quatro perigosos andróides que andam à solta pelas ruas de Los Angeles. Estes andróides, os modelos Nexus 6, os mais avançados andróides no mercado, têm como objetivo prolongar as suas vidas; recusam deixar-se morrer, e não se detéem perante nada para saber como prolongam as suas vidas.

Para aprender a identificar andróides Nexus 6, Deckard é enviado à sede da Tyrell Corporation, o gigantesco conglomerado industrial que fabricou os replicantes, e conhece Rachel, projecto especial de andróide que desconhece a sua verdadeira natureza, tendo sido implantada com memórias falsas para lhe criar a ilusão da consciência da sua humanidade.

O filme segue a caça de Deckard aos andróides, enquanto estes procuram os seus criadores. O final do filme dá-nos a cena memorável em que Roy Baty, líder do grupo de andróides, confronta Tyrell, o seu criador. Descobrindo-se incapaz de fugir ao seu destino, Baty assassina o seu criador, numa cena reminiscente do homem que aniquila os seus deuses. O filme termina com a morte natural de Baty, chegado ao fim da sua vida útil, e que nos seus últimos momentos poupa a vida de Deckard, revelando-se, talvez, humano. Entretanto há uma história paralela de amor entre Deckard e uma Rachel que descobre a sua verdadeira natureza biomecânica. Num pormenor profundamente paranóico, é sugerido que o próprio Deckard poderá ser um andróide incapaz de reconhecer a sua verdadeira natureza.

Blade Runner é um filme de subtextos profundos, onde o papel de herói é analisado em toda a sua ambiguidade - Deckard, o herói do filme, tem como missão aniquilar Replicantes, o que equivaleria a assassínio se os replicantes não fossem considerados menos do que humanos. A condição humana é a principal protagonista deste filme, constante através da metáfora das máquinas que buscam a sua humanidade, constantemente questionando e procurando a resposta às eternas questões que nos tormentam. Esta metáfora é constantemente sublinhada pela prevalência de olhos como motivo constante no filme - os olhos sendo as janelas da alma, numa história em que os personagens buscam a essência da sua alma.

Complexo e inquietante, Blade Runner é um filme marcante pelo seu conjunto - desde as temáticas às interpretações dos actores, sem esquecer a banda sonora assombrosa de Vangelis (muito datada mas em perfeita consonância com as imagens) e os cenários detalhados que nos tiram o fôlego. A paixão que este filme desperta pode ser resumida na evocação das cenas em que contemplamos a metrópole futura, onde dos arranha-céus pendem ecrãs gigantes onde os anúncios se entrecortam com rostos de gueixas, onde sobre a vitalidade das ruas desoladoras pende sempre a promessa de um mundo melhor fora do planeta, promessa suspensa sobre dirigíveis suspensos sobre cabos que apregoam as delícias dos outros mundos sem que nunca nos deixem o vislumbre da sua beleza anunciada, deixando-nos cativos da nossa busca nas profundezas das ruas desoladoras.