segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Frankenstein

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Frankenstein Films

A humanidade tem estranhos paradoxos. Estes fazem, talvez, parte do carácter do espírito humano, e são inspiradores de inúmeras histórias romanceadas ou tratados filosóficos que espelham e tentam responder às ânsias e aos medos gerados pelas inconsistências da alma humana que estão na base dos paradoxos que nos condicionam. A nossa atitude para com a tecnologia é um dos nossos mais marcantes paradoxos. Por um lado, a nossa sobrevivência como indivíduos e como espécie esteve sempre condicionada pelas tecnologias de que nos socorremos para melhorar as nossas condições de vida. A nossa dependência na tecnologia nunca foi tão marcada como na nossa época contemporânea, em que as tecnologias avançadas fazem já parte do nosso dia-a-dia. Por outro lado, temos um medo quase visceral da tecnologia e da ciência que lhe está subjacente. Cada novo desenvolvimento tecnológico é encarado como a abertura de uma caixa de pandora que espalhará males inauditos que irão corromper e prejudicar a humanidade. Mesmo nos tempos que correm, onde os benefícios de um ensino universal elevaram largamente o nível cultural de grande parte dos seres humanos, onde as maravilhas da ciência deixaram de ser mistérios e fazem corriqueiramente parte do ambiente humano, se nota este medo visceral do impacto das tecnologias. Este elevar do nível cultural nunca é o suficiente, e ainda com muitos defeitos, apontarão aqueles que desejam ver sempre mais à frente, mas a comparação cultural entre um homem ou mulher normal, do nosso tempo, com um homem ou mulher da idade média, ou até mesmo dos princípios do século XX, pode-nos fazer perceber que apesar de longe da perfeição, muito foi aquilo que evoluímos. Hoje em dia os princípios universalistas que permitiram à humanidade dar o grande salto de conhecimentos estão sob ataque cerrado de ideiais mais conservadores que tudo resumem ao lucro retirável das actividades humanas, mas isso seria tema para outras conversas.

Olhando para as fronteiras da nossa tecnologia depressa nos apercebemos que os velhos medos estão lá. O nuclear trás consigo o horror do apocalipse (algo de não é de todo injustificável). As biotecnologias despertam medos que vão desde a geração de aberrações vivas em laboratório ao espalhar de epidemias devastadoras provocadas pela manipulação do código genético - recordem-se que as suspeitas sobre a origem do ébola ou da sida em laboratório são um meme recorrente em lendas urbanas. Os ubíquos e inestimáveis telemóveis, sem os quais ninguém passa, têm a si associado o medo dos perigos inomináveis das radiações. Aqueles que, como eu, assistiram à explosão informática, recordam-se certamente de que os computadores eram vistos como uma ameaça à humanidade, tornando dispensáveis os trabalhadores humanos - algo que a nova economia, esta verdadeira revolução pós-industrial em que todos tentam embarcar, veio enterrar definitivamente no baú das ideias falaciosas. Por vezes, olhamos para trás e rimo-nos dos medos em relação à tecnologia quando nos recordamos que as primeiras locomotivas eram consideradas perigosas, temendo-se que a sua velocidade acima de uns incríveis vinte quilómetros por hora sufocaria os passageiros impedidos de respirar, ou que as fagulhas que saltavam das suas chaminés provocariam vastos incêndios; os primeiros espectadores de cinema fugiram assustados perante a imagem de uma locomotiva em andamento projectada no ecrã. Também certamente as gerações vindouras irão sorrir quando se recordarem dos nossos medos perante tecnologias que para eles serão hábitos adquiridos.

Frankenstein é uma das obras que aborda esta dicotomia entre o progresso desmedido e os seus potenciais horrores, tornada ainda mais valiosa pela sua precocidade - Mary Shelley escreveu a obra clássica nos princípios do século XIX, quando a revolução industrial estava nos seus primórdios e o impacto da ciência no dia a dia era muito reduzido. Apesar do tempo transcorrido, o impacto desta história de um homem de ciência cujo hubris em ultrapassar todos os limites morais na sua busca pelo progresso puro, com todas as más consequências daí advindas, ainda hoje ressoa nas nossas preocupações contemporâneas. Não por acaso, o subtítulo de Frankenstein é The Modern Prometheus - Victor Frankenstein é amaldiçoado pelas consequências dos seus actos desmedidos, tão amaldiçoado como o monstro fruto do seu acto criador, condenado à perseguição pelas turbas que erradamente vêem nele o mal.

Tal história faz parte do panteão clássico da literatura fantástica. Frankenstein é uma daquelas obras incontornáveis, uma das pedras basilares deste género literário. Tal como Drácula e o conto de fantasmas, Frankenstein é também uma forte influência no cinema fantástico. A história e o monstro encontram inúmeras encarnações no celulóide, oscilando entre a sombria reflexão sobre os limites da vontade humana e o mais puro kitsch. No entanto, entre os inúmeros filmes que giram à volta do mito, o homónimo Frankenstein de 1931 perdura como a mais interessante variação sobre tema do homem e dos monstros por ele criados.

Realizado por James Whale em 1931, este Frankenstein é uma adaptação que respeita vagamente a obra original. O cerne da história, do homem de ciência que numa enlouquecida busca pelo conhecimento desmedido cria um monstro, está lá, embora a moralidade seja manipulada na direcção das maldições que recaem sobre o homem que se arroga capaz de com os seus conhecimentos fazer aquilo que é prerrogativa dos deuses.

Henry Frankenstein é um jovem cientista que, ajudado por Fritz, um fiel ajudante corcunda, tenta gerar vida através da manipulação de partes de cadáveres revividos através da aplicação maciça de electricidade. Elizabeth, a sua noiva, está preocupada com Henry, não compreendendo porque é que este se encerra na sua torre, imerso no seu trabalho. Ela e o seu melhor amigo, Victor, vão ver o professor Waldman, mentor de Henry Frankenstein, procurando o seu auxilio. Os três visitam Henry no seu laboratório, mesmo a tempo de observar o sucesso das pesquisas de Henry - a reanimação da criatura monstruosa que prova que a tecnologia pode vencer a morte. Henry e Waldman esforçam-se por estudar a criatura, mas Henry, após um paroxismo de superioridade em que se sente um verdadeiro deus, fica progressivamente desiludido com a oscilante criatura que gerou, aparentemente incapaz sequer de falar. A situação precipita-se quando o monstro, torturado por Fritz, os ataca e quase consegue fugir. Waldman injecta uma potente droga no monstro, e este cai, inanimado. Com o monstro preso numa cela da sua torre, Henry regressa a casa, renascendo na normalidade e preparando o seu casamento com Elizabeth.

A felicidade da boda é estragada pelo monstro, que se liberta, assassina Waldman, e parte em busca de Frankenstein, procurando vingança. Entrentanto, provoca a morte acidental de uma menina, o único ser que não mostrara medo ou asco perante a aparência disforme do monstro. No castelo dos Frankenstein, o mosntro prega um clássico susto de morte à noiva de Henry. A populaça, enfurecida pela menina morta, é conduzida por Henry numa caça ao monstro, que culmina num moinho, onde o monstro cofronta o seu criador. Os aldeões, enfurecidos, pegam fogo ao moinho, aniquilando assim a ameaça do inominável monstro criado por Henry Frankenstein. Supostamente, claro, porque a criatura havia de regressar para mais clássicos filmes produzidos pelos estúdios Universal. Quanto a Henry, recupera da sua loucura e foge às pesquisas científicas, contentando-se com uma vida tranquila ao lado da sua noiva.

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Frankenstein é um filme repleto de cenas memoráveis. O início do filme marca logo o tom tenebroso da história, com um funeral filmado em tons góticos. Henry e Fritz apresentam-se como ladrões de corpos, dispostos a violar a campas e a recuperar cadáveres de enforcados para encontrar material para o trabalho de Henry. Outra cena que marca o filme é aquela em que Fritz assalta a universidade para roubar um cérebro. Na confusão, Fritz destroi o cérebro normal que era sua missão roubar, e traz consigo o cérebro de um criminoso. Fica aqui estabelecido o tom do filme, em que a hubris e a loucura de Henry Frankenstein são perdoáveis, mas o monstro é considerado um verdadeiro monstro. Mesmo assim, o tom continua ambíguo - a personagem de Henry Frankenstein oscila entre a obsessão, o orgulho desmedido, e o arrependimento pelos seus actos, enquanto o monstro, apesar de mostrado como um antigo criminoso, é uma massa disforme torturada por Fritz, rejeitada pela humanidade, e com os atributos de um atrasado mental. Henry Frankenstein coloca-se acima do bem e do mal, enquanto o monstro é colocado abaixo do bem e do mal.

A cena em que Frankenstein dá vida ao monstro é a clássica cena do laboratório do cientista louco, inspirada no laboratório de Rotwang em Metropolis, levada aqui ao exagero com uma profusão de equipamentos de aspecto tecnológico e os inimitáveis geradores van de graaf a faíscarem. Esta é sem dúvida a cena mais icónica do filme, copiada e glosada em números filmes. É uma cena poderosa, em que Henry sobe a paroxismos de ambição desmesurada, enquanto os raios e trovões dão vida à sua criação perante os olhares horrorizados dos incautos espectadores.

A cena em que o monstro provoca a morte de uma rapariga, controversa na altura, foi durante anos censurada e só recentemente foi adicionada às edições do filme. A cena é de uma moralidade extremamente ambígua, tendo em conta o filme. Apesar de sabermos que estamos perante um monstro, ficamos enternecidos ao vê-lo contemplar a beleza da natureza. A rapariga, sem saber que está diante de um arquétipo do horror, convida o monstro a participar das suas inocentes brincadeiras. Sem medir as consequências do seu acto, o monstro atira a rapariga para um lago, matando-a. A ambiguidade é óbvia: o monstro, perseguido e odiado, é castigado pelos seus actos, sem que no entanto tenha a capacidade mental para medir as consequências dos seus actos. Ao ver que a rapariga se afoga, o monstro, incrédulo e incapaz de saber o que fazer para a salvar, foge, assustado. Na oposição perfeita, Henry Frankenstein é perfeitamente capaz de medir as consequências dos seus actos, mas coloca-se acima do bem e do mal, não sendo castigado pela sua ambição e perseguindo o fruto do seu trabalho.

No clímax final, o monstro confronta o seu criador no moinho, e é destruído pelas chamas ateadas pela turba de archotes em punho. A cena desvance-se no preto do ecrã, enquanto o moinho em chamas gira ominosamente. Mais uma vez, a cena é ambígua, remetendo para o sul americano, para o Klu Klux Klan com as velas em forma de cruz do moinho a arder.

Frankenstein é um filme surpreendente e dinâmico, para altura em que foi realizado. James Whale fugiu à estaticidade do filme de salão, e optou por cenas curtas, com vários pontos de vista entrecortados numa montagem arrojada. As cenas decisivas do filme são profundamente influenciadas pelos filmes expressionistas alemães, como Nosferatu, Metropolis ou O Gabinete do Doutor Caligari, com os seus cenários exagerados onde os espaços são distorcidos.

Os actores são fieis aos papeis, sublinhando bem o carácter das personagens. Edward Van Sloan, no papel de Waldman, vinca o paradigma do velho professor, conhecedor de saberes arcanos, que sabe os limites da sua ciência, algo que já havia delineado em Drácula (o estilo de Van Sloan é glosado por Anthony Hopkins no Drácula realizado por Coppola). Dwight Frye, o louco Renfield de Drácula, vinca aqui o papel do servil corcunda que se tornaria um dos ícones do filme de terror - embora o corcunda tenha sido imortalizado como Igor em vez do Fritz do filme. Colin Clive interpreta Frankenstein com as doses certas de ambição, obsessão e desilusão, contribuindo para a ambiguidade do filme.

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Jack Pierce, o director de caracterização dos estúdios Universal, superou-se com a criação do monstro icónico - a imagem do monstro de Frankenstein foi para todos os efeitos fixada neste filme, num ícone tão poderoso que passou a encarnar o espírito da obra. Ao ícone só faltava um actor que o animasse - Bela Lugosi recusou o papel, e Boris Karloff animou o monstro, criando história do cinema.

Icónico e inspirador, Frankenstein é um filme ambíguo, que transformou uma personagem num mito e que influenciou incontáveis obras posteriores. A passagem do tempo não envelheceu o filme, que ainda hoje, na era dos maravilhosos efeitos digitais acoplados a inteligentes argumentos (no melhor do cinema), continua uma obra fascinante e inspiradora.