terça-feira, 4 de julho de 2006

Metropolis

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Restauro do filme

O meu primeiro contacto com este esplendoroso clássico do cinema deu-se nos velhos tempos da minha infância. Ainda me recordo de ligar a televisão, a televisão ainda a preto e branco dos meus tempos de petiz, e ficar fascinado por um videoclip dos Queen que por detrás da música irritantemente má da banda mostrava imagens fabulosas, de um preto e branco que traíam a idade das imagens. A canção desapareceu nas brumas da memória, mas as imagens de uma cidade fabulosa onde as máquinas pareciam reinar, com fabulosos arranha-céus e estradas por onde circulavam veículos quilómetros acima da superfície, as imagens de máquinas enlouquecidas servidas por homens escravizados ficaram-me gravadas a ferro na memória. Anos mais tarde sube que se tratavam de imagens do lendário filme de Fritz Lang, Metropolis.

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A história contada em Metropolis resume-se em poucas linhas. Freder Fredersen, o filho do magnata Joh Fredersen, que rege a cidade industrial de Metropolis, vive a vida doce reservada às classes de élite até conhecer Maria, uma rapariga operária por quem se apaixona. Correndo atrás de Maria, Freder desce ao submundo de Metropolis, à cidade subterrânea onde vivem os operários encarregados de manejar as inclementes máquinas de Metropolis. Freder descobre o lado mais tenebroso da cidade - a submissão das vidas dos trabalhadores às inclementes necessidades das máquinas. Maria é a líder espiritual de um movimento revolucionário de trabalhadores, que cataliza o descontentamento da classe na espera pacífica por um mediador que resolva as diferenças entre os operários e as classes dominantes. Freder, impressionado com o esforço da vida dos operários, toma o lugar de um operário cuja função parece ser a de girar os ponteiros de um relógio - um trabalho redutor e extenuante, que esgota Freder. Joh Fredersen, apercebendo-se dos ventos de revolta que grassam entre os operários, alista a ajuda do inventor Rotwang, que lhe mostra o mundo subterrâneo de Metropolis. Ao ver Maria a discursar aos operários, Joh ordena a Rotwang que a rapte, e que a substitua pela sua maior invenção - o homem-máquina, um andróide mecânico capaz de substituir a humanidade.

Rotwang havia construído o andróide como forma de reviver a sua falecida amada Hel, esposa de Joh e mãe de Freder, e acaba por obedecer a Joh para se vingar. Maria é raptada e o andróide metamorfoseia-se em Maria. O único detalhe que nos permite distinguir as duas Marias está nos olhos - o olhar de Maria, a mulher, é honesto e pacífico, o olhar da robot-Maria é demoníaco. Sob as ordens de Rotwang, a Maria mecânica semeia o descontentamento entre a classe operária e enlouquece os senhores de Metropolis com as suas danças sensuais no clube Yoshiwara. As tensões acumulam-se e Metropolis colapsa no caos. Enquanto os senhores percorrem as ruas, enlouquecidos pelo corpo de Maria, os operários revoltados destroem as máquinas que tornam Metropolis próspera. Mas ao destruir as máquinas inundam a cidade subterrânea, ameaçando, sem o saberem, as vidas dos seus filhos. Estes são salvos por Maria e por Freder. Dando-se conta da morte dos seus filhos, sem saber que estes estão a salvo, a multidão furiosa procura Maria, encontrando-a nas ruas lascivas de Yoshiwara. Furiosos, queimam Maria vida, descobrindo assim que estavam a seguir uma falsa Maria - as chamas revelam o corpo mecânico que estava por debaixo da pele da doppelganger. O filme termina com Freder, após salvar a verdadeira Maria das garras de Rotwang, a unir os operários com os senhores da cidade, tornando-se, na terminologia do filme, o "coração que une o cérebro e as mãos".

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A ideia-base de luta social insere-se perfeitamente no contexto dos anos vinte, precisamente no auge da era industrial mais pura, em que ideias como justiça social ou direitos laborais estavam em combate contra os ideiais das classes dominantes. Esta mensagem de Metropolis tem de ser vista à luz dos ismos que condicionaram o século XX, e que fervilhavam na altura em que o filme foi realizado. Outra das ideias base do filme, a despersonalização do homem face à tecnologia, ainda hoje é válida e utilizada. Pode-se substituir as maquinarias industriais, com as suas correntes e transmissões, pelos supercomputadores todo-poderosos da geração cyberpunk que a imagem do homem escravizado perante a máquina se mantém, inalterada. Finalmente, podemos também ver em Metropolis a inelutável luta entre gerações, com o conflito que opõe os ideias do pai Joh Fredersen ao seu filho e herdeiro.

Se tudo isto chega para fazer filmes interessantes, talvez não chegue para fazer um grande clássico do cinema, intemporal mesmo passados quase cem anos sobre a sua realização. O que realmente torna Metropolis no fabuloso filme que é é a visão única de Fritz Lang. Realizador de vasto talento - pensemos em Dr. Mabuse ou M, Fritz Lang soube imbuír Metropolis com uma visão única e multifacetada. Por um lado, temos a visão da cidade ultra-moderna, uma metrópole inspirada no tecido urbano de Nova Yorque. Essa visão da cidade ainda hoje inspira artistas e cineastas - Blade Runner, o filme de culto de Ridley Scott, é o exemplo mais flagrante. Mas a visão de Lang não se limita à luxúria visual dos cenários. Treinado em pintura, Lang soube transpor para a tela do cinema as novas estéticas do expressionismo. O filme puxa as imagens, exagera; cenas há que mais se assemelham a obras de arte expressionistas e dada (vem-me à memória O Enterro de Oscar Panizza de George Grosz com as suas visões de ruas em fúria e de edifícios demoníacos). A montagem do filme escapa ao padrão de palco filmado da época - as cenas são rápidamente entrecortadas, dando ao filme um ritmo visual alucinante que nos leva a mergulhar na loucura de Metropolis.

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São muitas as cenas visualmente geniais do filme. A cena em que Freder se apercebe da impessoalidade da sua cidade, com uma alucinação em que vê a máquina-mãe de Metropolis como uma encarnação do deus Moloch, que devora os operários nas suas chamas; todas as cenas em que somos levados a vislumbrar magníficos fragmentos da cidade gigantesca; a cena em que Freder opera a máquina, com a imagem quintessencial do homem escravizado à máquina; a cena em que Rotwang dá vida ao robot Maria, protótipo de todas as cenas de todos os filmes em que um cientista louco poem em movimento aparatos tecnológicos insondáveis para dar vida a criaturas monstruosas no meio de uma tempestade de electricidade; as cenas sensuais em Yoshiwara, em que a dança lasciva de Maria se dissolve em olhares, e depois em olhos, com o ecrã a encher-se de olhos mesclados que nos revelam a loucura na alma do homem; o final assombroso do filme, com a cidade a dissolver-se numa orgia de ferro e fogo filmada alucinantemente em míriades de pontos de vista que se sucedem num ritmo implacável.

Realizado em 1927, Metropolis conta com o argumento de Thea Von Harbou, mulher de Lang e famosa pelas suas simpatias nacional-socialistas (o que não significa que Metropolis seja um filme de ideologia Nazi, antes pelo contrário) e quase levou à falência os mega-estúdios UFA, que o produziram. Os cenários fabulosos do filme, os seus efeitos especiais e os milhares de figurantes necessários para dar vida a Metropolis custaram cerca de sete milhões de marcos, tornando este no filme mais caro da época.

Metropolis é uma obra fundamental do cinema, a influência por detrás de filmes como Blade Runner (andróides e uma Los Angeles visualmente metropolitana), Star Wars (o simpático C3PO foi directamente inspirado na andróide Maria), Dr. Estranhoamor (a personagem enluvada de Strangelove, o cientista louco, é perfeitamente decalcada de Rotwang), em suma, fundamental em influenciar grande parte da cinematografia de Ficção Científica. Embora não sendo o primeiro filme de Ficção Científica - essa honra cabe à Viagem à Lua de Meliès, é, sem dúvida, o mais influente filme do género.

Metropolis também fica para a história como um dos mais mutilados filmes de sempre. A cópia original do filme foi rapidamente cortada para criar versões mais curtas do filme. O Metropolis que hoje podemos ver é uma aproximação, uma tentativa de reconstrução da visão original de Lang. Com o original perdido, as adaptações foram muitas, com resultados mistos - não é de esquecer a adaptação dos anos oitenta que contou com uma banda sonora onde pontuavam os Queen ou outras relíquias entretanto (e felizmente) caídas em esquecimento como Meatloaf ou Bonnie Tyler (é difícil de conceber uma visão mais desfazada das sonoridades). Esta adaptação, recentemente editada pela FNAC, reúne a mais recente tentativa de reconstrução do filme, um esforço levado a cabo pela Fundação Friedrich Wilhelm Murnau que, pelo cuidado posto na digitalização do filme e no rigor da reconstituição da visão original do realizador conseguiu ver esta reconstituição recnhecida com o estatuto de tesouro cultural por parte da UNESCO.