segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Escapadelas



Amazing Adventures
Michael Chabon on The Escapist
Wikipedia | Escapist
Wikipedia | Michael Chabon

The Amazing Adventures of the Escapist, Michael Chabon (ed.), Dark Horse, 2006

Em 2001, o escritor Michael Chabon publicou um romance que lhe valeu o prémio Pulitzer. Neste seu livro, The Amazing Adventures of Kavalier & Clay, Chabon ao mesmo tempo homenageia e traça uma história ficcionada da era dourada dos comics - a era que viu surgir a banda desenhada como mais do que entretenimento para crianças, a época em que se lançaram as fundações para o que hoje muito justamente se considera a oitava arte. O trabalho dos criadores e argumentistas, que por um lado investiam fortemente nos comics como um negócio rentabilizável, e dos artistas-ilustradores capazes de arriscar novas formas e novos dinamismos visuais, atingiu nesta época massa crítica. A era dourada é a era do genial Will Eisner, que começava a redefinir os cânones visuais com a maneira fílmica como desenhava o Spirit; é a era da EC Comics, cujas incursões no domínio polémico do terror (escabrosas para a época, ingénuas segundo os nossos padrões) levantaram tantas sobrancelhas que a editora foi forçada a suspender os seus mais aclamados títulos, tendo a celeuma dado origem ao comics code, um código de censura voluntário que durante décadas ditou o que se poderia publicar ou não; é a era de Stan Lee a transformar a Marvel num gigante editorial publicando comics ao rumo dos gostos do público - a mesma empresa que publicou o Homem-Aranha também publicou o True Romance; é a era de Jack Kirby a dar o mote no estilismo visual pulp dos comics.

O livro de Chabon segue as aventuras de dois primos que nos anos 40 se lançam na aventura dos comics - um como refugiado do nazismo em busca de sustento e outro como um homosexual aleijado pela poliomielite. Juntos criam o Escapista - personagem prototípico do super-heroi, um jovem paralítico que graças ao poder que lhe é concedido por uma chave de ouro consegue realizar feitos incríveis de prestidigitação, ganhando a vida como ilusionista e combatendo o crime como homem de acção ao serviço da Liga da Chave Dourada contra os energúmenos da Corrente de Ferro.

Leram bem, chave de ouro.

Há uma fina ironia nesta ficção dentro da ficção que espelha a realidade, com dois jovens a escaparem aos seus tormentos criando uma personagem de ficção escapista denominado O Escapista. Mas há mais sub-textos em volta, firmemente alicerçados na história da cultura popular de massas, evocando os feitos maravilhosos dos mágicos e dos prestidigitadores, evocando os hérois que resolviam os mistérios ao murro imortalizado na singular onomatopeia POW!.

Diz-se que a vida imita a arte, e o Escapista é um caso típico. Não descobri o personagem através do romance, que agora vai ter de ser obrigatoriamente lido; descobri-o através de uma antologia de comics que por momentos me pôs a duvidar da realidade.

A antologia The Amazing Adventures of the Escapist reúne dois volumes de comics publicados. O primeiro pormenor que salta à vista é a qualidade gráfica dos comics: houve cuidado na ilustração, com uma cuidada selecção de artistas onde pontuam Howard Chaykin (American Flagg) e - no seu último trabalho criado e publicado - o mestre Will Eisner. Os nomes menos conhecidos primam pela excelência quer gráfica quer em argumento. As histórias deste prototípico herói homenageiam o estilo da banda desenhada da era dourada - contos curtos, de cores vivas, e resolução saudosista, embora com a marca da nossa contemporanieade na moralidade dúbia que neles prevalece.

A antologia também contem uma série de textos que nos vão contextulizando o historial do personagem, um historial atribulado de artistas mal pagos, inúmeras publicações de qualidade duvidosa e decadência da propriedade intelectual fora das mãos dos seus criadores e nas mãos àvidas de editores pouco escrupulosos. É um historial que espelha bem a realidade da era dourada dos comics - afinal, a banda desenhada era entendida como um meio lucrativo de comunicação. Nós é que somos mais insistentes com a ideia do comic como objecto de valor artístico. É tambem um historial totalmente falso.

O Escapista é um personagem de ficção criado por dois autores ficcionados. Nunca existiu, excepto nestas publicações precedidas do aclamado romance de Chabon - o mesmo autor por detrás deste comic. Mas admito que o ar verosímil dos textos enganou-me, o que não é muito difícil - a história dos comics está pejada de personagens esquecidos, de súbitas viragens de interesse, de plágios declarados. Podia ter desconfiado quando li que a personagem tinha surgido na inexistente editora Fab comics - mas publicou-se um comic intitulado Pep Comics. Devia ter desconfiado quando li sobre o tirocínio do personagem - louro e de olhos azuis - enquanto propriedade de uma empresa dedicada a vender cosméticos para peles escuras, em que foi metamorfoseado em afro-americano. Começei a desconfiar quando detectei nomes de artistas conhecidos, como Neal Adams, Stan Lee ou Gene Colan, associados a um personagem tão obscuro. Mas confesso que foi necessária alguma pesquisa para gargalhar com o embuste da história totalmente ficcionada deste personagem de ficção.

Publicar um romance de ficção que retrata através de personagens ficcionadas a história dos comics, e depois pegar no héroi de ficção criado pelas personagens do romance como uma história verídica que dá origem à publicação de comics e ao seu estabelecimento como personagem do panteão dos comics é uma jogada de mestre, digna de Jorge Luis Borges. Aliás, não consigo deixar de pensar em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, um conto onde a ficção se manipula em realidade. Este Escapista e a obra de Borges têm muito em comum.