O frio aperta, enregela a pele e entranha-se nos ossos. Os dias são iluminados por um sol gélido e as noites longas e desoladoras. O inverno impera. Este é o seu momento, o momento em que as suas frias garras nos evolvem num abraço gelado. Nas trevas da noite buscamos o calor, aquecemos a alma com aqueles que nos estão mais próximos, se não por afinidades, pelo menos por sangue. Podemos chamar a esta noite a noite de natal, de solstício, do hannukah ou qualquer outro nome que nos ocorra. O que esta é é a noite em que nos agregamos, fugindo do frio e das trevas, combatendo a obscuridade com o calor humano. Mesmo no nosso mundo ultramoderno, em que as maravilhas são corriqueiras, em que vivemos o futuro, mantemos os velhos hábitos de um mundo mais antigo, mais simples, de um mundo perdido nas trevas da memória.
Os meus velhos natais são momentos ciosamente guardados na minha memória. Natal para mim era o momento em que saía com os meus pais de Lisboa em direcção ao mundo desconhecido e fascinante do campo, onde o ar era mais puro, o céu eras mais azul, e os campos não tolhiam a liberdade como as ruas o faziam. Natal era a tradicional reunião familiar na casa da minha bisavó, anciã enrugada que comentava sempre que sabia que alguém mais novo do que ela tinha falecido que "já estava muito velho para andar por aqui". A casa ficava numa íngreme encosta à chegada da aldeia do Freixial do Meio, duas curvas a seguir à Merceana como quem vai para Runa. Ao lado da casa estava o palácio dos viscondes da Merceana, essencialmente um casarão minúsculo de portadas sempre fechadas que eu imaginava cheio de poeirentas riquezas aristocráticas, talvez influenciado pelas poucas histórias que ouvia dos tempos em que os viscondes habitvam o seu paço. Hoje, esse edifício está posto a uso como estação de pesquisa vitivinícola. Naqueles tempos, era um edifício deserto respeitado por todos.
A casa estava de tal forma entranhada na colina que parte da casa ficava soterrada. A àrea mais arejada era a adega, com os fabulosos depósitos onde o vinho ficava a amadurecer, estruturas gigânticas ao meu olhar de petiz, e a estrutura do lagar onde nos meses de setembro eu ajudava a pisar o vinho. Seguia-se o quintal, pequeno mundo de maravilhas para um rapaz da cidade pouco habituado às ternuras do mundo natural. A terra, a lama, o cheiro das plantas sob o céu azul e o silêncio da aldeia. Mas era na sala, cujas portas davam para quartos sem janela, onde toda a família se juntava para a ceia de natal. Enquanto os avós, e os tios celebravam com o bom vinho do ano, as avós e as tias afadigavam-se na velha cozinha com a sua mesa de madeira e fogão de lenha a preprar as iguarias para o jantar. De todas as iguarias apenas me recordo da mousse de chocolate, à qual adorava ir roubar nozes embebidas no chocolate cujo sabor me ajudava a esquecer as obrigatórias palmadas do castigo.
O ponto alto da consoada era a missa do galo, quando à meia noite nos deslocávamos à igreja da Merceana para assistir à tradicional missa. A obrigação religiosa era um momento entediante, quebrado apenas pela boa vontade do pároco da vila, que todos os anos erguia na sua igreja barroca o mais belo presépio que me recordo. O presépio ficava debaixo de um altaneiro pinheiro verdejante cujas bolas douradas e prateadas brihavam com a luz bruxeleante das velas da missa. Eram tempos sem grandes preocupações ecológicas, em que grande parte do país vivia da terra e do que a terra dava. O presépio em si era um mundo de fascínio, em que a cena central, a da natividade, se perdia no meio de tanto pormenor, no meio de tanto pastor e dos seus rebanhos, onde o musgo fazia as vezes dos montes e vales. O presépio incluia pequenas casinhas como aquelas que eu via na aldeia e, em anos mais inspirados, uma ponte a atravessar um rio formado por um espelho coberto com musgo. Em minha casa a minha mãe costumava construir comigo uma versão mais simplificada destes presépio, que se resumia a uma casinha, a uma ponte e um largo rebanho de ovelhas que se iam quebrando de ano para ano. Enquanto o padre perorava e os fieis oravam, eu contemplava aquele monumental presépio, com a imaginação perdida naquele mundo imaginário.
O amanhacer trazia consigo o abrir das prendas e um dia de alegres brincadeiras, estreando os novos brinquedos, até que chegava a hora de regressar a Lisboa.
Hoje os natais já não são como nesses tempos que teimam em persistir na minha memória. A família mudou, e há muitos anos que não regresso aquela aldeia no fundo do vale onde passei momentos inesquecíveis. O natal de hoje traz as angústias com a tremenda despesa em lembranças, mitigada pelo gosto do acto de partilha. Mas ainda é uma noite para passar em família, a única altura do ano em que as famílias se juntam. Mas por entre o bacalhau e os doces, a minha mente vagueia sempre até aquele momento em que o natal era um momento de maravilha - não pelas prendas, não pela festa religiosa, mas sim pelo momento em que todos se juntavam à volta de uma mesa farta.
Para aqueles que acreditam nos dogmas religiosos, um feliz natal. Para os que preferem o solstício, boa noite. Para aqueles que, como eu, deixaram de dar importância às definições, uma saudação de copo bem erguido.