domingo, 12 de novembro de 2006

Viagem a Tulum



Edições ASA | Viagem a Tulum

Milo Manara/Federico Fellini, Viagem a Tulum, Edições ASA, 2003

Quando se fala em Milo Manara vêm logo à mente os excessos eróticos das suas belas e elegantes heroínas. Manara distinguiu-se como um dos mestres da banda desenhada erótica, distinção em larga medida conseguida pela sua mestria no traço do corpo da mulher. Sempre fiquei embasbacado pela forma como, com uma restrição de traço quase monástica, Manara conseguia transmitir a beleza e a sensualidade do corpo feminino de forma magistral. Manara não retrata a beleza estereotipada do silicone e da vulgaridade, antes a mais rarefeita beleza idealizada da elegância pura. O campo da BD erótica, que como boa aproximação à pornografia tem sempre sucesso garantido, pulula de obras dos mais díspares autores, mas apenas o nome de Milo Manara é dito com reverência.

Fellini dispensa apresentações. Recentemente falecido, Fellini é indiscutívelmente um dos grandes realizadores do cinema italiano e mundial. A sua obra fílmica é pautada por filmes ao mesmo tempo líricos e oníricos, com os toques de surralismo jocoso que originaram o adjectivo fellínico. Autor de obras como 8 e 1/2, Amarcord ou Roma, os seus filmes são uma viagem intimista às suas recordações por vezes desconexas, cheios de poesia nostálgica que se traduz numa linguagem fílmica muito própria. Fellini é um fascínio, e os seus filmes obras apaixonantes.

Viagem a Tulum foi o filme que Fellini sempre quis realizar mas nunca conseguiu. Entrecortanto as visões místicas inspirados na filosofia de raízes pré-colombianas de Carlos Castañeda com as visões oníricas de Fellini, Viagem a Tulum desenrola-se como uma viagem iniciátia em que através do sonho e do pretexto da antiga magia tolteca mergulhamos nos mundos fabulosos que se ocultam nas profundezas da alma. Mas, como filme, nunca pegou. Este tomo de banda desenhada conta-nos, em textos introdutórios, como Viagem a Tulum nunca encontrou produtor disposto a financiar o filme (Dino de Laurentis, que mais tarde produziu o falhanço comercial mas sucesso de culto que foi Dune esteve muito perto de produzir este guião de Fellini, tendo apenas desistido por ser muito supersticioso). Fellini foi publicando o guião no Corriere della Sera, e aqui entra Manara: apaixonado confesso da obra de Fellini, propõe ao realizador ilustrar as suas visões. O resultado final está aqui, sobre a minha mesa.

Viagem a Tulum é um album de banda desenhada fascinante. O traço preciso e leve de Manara alia-se na perfeição às palavras de Fellini para criar um ambiente onírico, de uma realidade quase surreal onde parece não haver fronteira entre o sonho e o mundo. Manara mantém o corpo e o espírito do argumento, mas inicia a história com um percurso pela Cinecittá, como uma entrevista aos sonhos de um realizador que contempla um lago onde se afundam/surgem as suas ideias. Manara encontra inúmeras formas de homenagear Fellini - desde a imagem contemplativa de um sonhador apaixonante a referências explícitas ao mais famoso filme de Fellini, La Dolce Vita, com uma caótica cena de papparazis que se atropelam para ver um Marcelo Mastroianni metamorfoseado em Fellini nas ruas de Los Angeles.

Viagem a Tulum conduz-nos através da imaginação de Fellini, desde as reminiscências da Cinecittá até aos delírios inspirados na mitologia tolteca, utilizando Mastroianni, actor recorrente na filmografia de Fellini, como um alter-ego mundano e elegante do autor. É uma história de sonhos e sonhadores, de almas repletas da mais bela fantasia.