segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Sete Anos no Tibete



Wikipedia | Heirich Harrer
Edições ASA | Sete Anos no Tibete


A literatura de viagens é um velho vício inconfessado. Incapaz de visitar os recantos mais recônditos do planeta, e sem vontade de percorrer circuitos turísticos repletos de visões pré-programadas, refugiei-me nas palavras daqueles que ainda arriscam viajar sem rede para capturar para a minha alma um pouco daquele espírito de descoberta e aventura que caracteriza uma viagem. Invejo e admiro aqueles que partem, de mochila às costas, armados com a sua curiosidade, prontos a desbravar o desconhecido. Tempos houve em que raros eram os que partiam à aventura, e tempos houve em que a descoberta dos recantos obscuros, dos lugares brancos do mapa onde se dizia que havia dragões, inspirou a humanidade com os relatos das aventuras nas selvas mais profundas. Marco Polo e as suas viagens, os périplos dos navegadores portugueses, as gestas dos mercadores que percorriam a rota da seda, unindo ocidente e oriente, Cook e as suas viagens de exploração científica, os relatos obscuros de um certo Hanão, fenício do qual se dizia que havia ultrapassado as colunas de Hércules e navegado até às brumas do que hoje são as ilhas britânicas, as aventuras exóticas dos exploradores africanos que carregavam o white man's burden até às profundezas das selvas da darkest africa, Cheng-ho, almirante chinês cujas frotas desbravaram o índico. Magalhães a circum-navegar o planeta e os caçadores de peles a penetrarem nas profundezas do novo mundo. Lewis e Clarke a descobrirem as grandes planícies e as alterosas ondas do pacífico. A maravilhosa banalidade das carreiras comerciais das companhias das índias, da carreira do pacífico, da carreira das índias, da rota do ouro das caraíbas. Afonso de Albuquerque guerreando e desbravando as Índias. A história está repleta de relatos apaixonantes de viagens impossíveis, em que cada novo passo é uma descoberta, cada novo olhar uma nova visão sobre paisagens até então desconhecidas.

Uma boa medida do fascínio da humanidade pelos périplos em terras incógnitas está na popularidade da Odisseia, talvez o mais arcaico texto de literatura de viagens.

Doctor Livingstone, I presume? Se estas frases não nos fizerem sonhar, então é porque perdemos algo da nossa humanidade neste mundo contemporâneo onde o planeta está ao alcance de uns cliques no rato, e as maravilhas dos satélites nos permitem perscrutar as ilhotas esquecidas, os desertos escondidos e as cidades de grande fama.

Entrando no campo da literatura de viagens, há livros que saltam imediatamente à minha memória, de tão marcantes que foram para o meu espírito. Anatomia da Errância e Na Patagónia de Bruce Chatwin, O Velho Nilo, de Stanley Stewart, Patagónia Express de Luís Sepúlveda, ou Terra Incógnita de Sarah Wheeler, foram livros que me marcaram pela descoberta de novas paisagens e pelas sublimes descrições da emoção do movimento por terras estranhas. Mas estes são livros escritos por escritores profissionais, que se fizeram à estrada, ao barco e ao avião com a intenção expressa de ir. Outros livros há em que a intenção não era a da pura viagem, em que os narradores partiram das suas terras em missão de descoberta ou em simples viagens, mas em que as voltas do mundo os fizeram viver aventuras inesquecíveis. Vêm-me à memória A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto pelas terras de um oriente exótico e perigoso, ou Os Sete Pilares da Sabedoria de T. E. Lawrence, o famoso Lawrence da Arábia, guerreando os exércitos turcos nas dunas do profundo deserto arábico. E, claro, este Sete Anos no Tibete.

Quando um livro é adaptado ao cinema, algo se perde. O ritmo das imagens em movimento não é o mesmo ritmo das palavras. A necessidade de contextualizar o que se vê obriga muitas vezes ao deturpar das palavras originais. Quando vi o filme, fiquei supreendido pela sua mediocridade. Talvez a única virtude do filme esteja no alerta que faz para a história de um povo que vive há décadas debaixo do jugo chinês, numa ocupação ilegal que as grandes potências preferem ignorar. Trata-se da China, gargantuesca economia dos negócios homónimos, e perante as perspectivas de lucros astronómicos, o que interessam os destinos de um qualquer povo que habita as montanhas do planalto no topo do mundo?

O primeiro pormenor que me atraiu na leitura deste Sete Anos no Tibete é a sua prosa. Heinrich Harrer, o seu autor, claramente não é um escritor em busca das melhores metáforas. Harrer limita-se apenas a descrever a sua odisseia de prisioneiro de guerra na Índia a tutor do adolescente Dalai Lama, em frases curtas, objectivas e por vezes um pouco secas. Não há grandes filosofias neste livro, nem longas considerações sobre as diferenças entre os povos. A riqueza deste livro está no próprio relato das aventuras e desventuras de Harrer e dos seus companheiros de viagem, bem como da sua vida quotidiana, bastante banal se não pelo facto de ser em Lhasa, entre os tibetanos. Secamente, Harrer transporta-nos à grandeza das paisagens dos Himalaias e descreve uma sociedade fechada, muito própria, nas vésperas de ser arrasada pelo Exército Vermelho. Preciosas são também as descrições da sua convivência íntima com um curioso adolescente que era nada menos do que o Dala Lama, líder religioso dos tibetanos, e que ainda hoje surpreende por ser o menos dogmático dos líderes religiosos.

Sete Anos no Tibete é uma daquelas obras preciosas, em que observamos novos mundos através dos olhos de quem os descobriu. Nestes tempos em que com o mínimo esforço podemos perscrutar terras distantes, outros mundos inclusivé, apenas nos restam estes relatos para nos transmitirem um pouco daquela sensação indescritível que é a de levantar o véu sobre o desconhecido.