sábado, 18 de novembro de 2006
O regresso das múmias
Return From The Dead, editado por David Stuart Davies, Wordsworth, 2004
Return From The Dead
Wikipedia | Arthur Conan Doyle
Wikipedia | Bram Stoker
Wikipedia | Edgar Allan Poe
O grande valor das antologias está na forma como diferentes autores abordam os mesmos temas. No campo da fantasia e ficção científica, as antologias são muitas vezes utilizadas para dar voz a novos autores, em volumes que coligem os seus contos com os contos de autores mais consagrados. É algo que está institucionalizado em obras como The Year's Best SF, editado anualmente. Mas estou a divergir.
O antigo Egipto, essa civilização de monumentos milenares e deuses misteriosos que se oculta sobre as areias que ladeiam as margens do Nilo, ainda hoje nos desperta a curiosidade e excita a imaginação. Lembro-me de ler algures um editor contar que bastava colocar uma imagem egípcia na capa da revista que editava (curiosamente, a Cahiers de Science et Vie) para assegurar um aumento nas vendas. As viagens ao Egipto não dispensam um périplo pelas grandes ruínas da antiguidade egípcia. Ou, para ser mais preciso, do país de Khem, nome que os antigos egípcios se davam a si próprios e que ainda hoje sobrevive na palavra alquimia. Luxor, Abydos, Karnak, Abu Simbel são nomes que nos despertam visões exóticas de ruínas sob o sol abrasador do deserto. As pirâmides, hoje transformadas num subúrbio do sprawl urbano do Cairo, ainda exercem o seu fascínio como gigantes monumentos mortuários. É sempre bom não esquecer que do alto das suas pedras, quarenta séculos nos contemplam.
A pedra basilar da sociedade egípcia era a sua crença numa vida para além da morte - crença que se reflectiu e alimentou numa rica mitologia, e crença que gerou o grande legado do antigo egipto para o futuro - os grandes túmulos egípcios, repletos de tesouros e imagens fascinantes que nos revelam a vida de há milénios, que nos fazem vislumbrar vidas esquecidas e espernças esfumadas sob o sol ardente.
A sua crença inabalável na vida além da morte fez os egípcios antigos desenvolverem as técnicas de mumificação, numa tentativa de preservar o corpo para a vida futura. Graças às múmias, podemos hoje contemplar o rosto dos antigos egípcios. E podemos também sonhar com estranhos mistérios, ligados à imortalidade, ao poder dos deuses do antigo egipto, e às acções tenebrosas de múmias reanimadas. Não é um tema que surga muito, nesta era mais contemporânea, graças à sobre-exploração do muito das múmias em míriades de filmes de série B, mas era um tema que galvanizava os escritores vitorianos. Estes, vivendo numa era em que as luzes da ciência começavam a iluminar o mundo, ficaram fascinados com os mistérios decifrados pela recente disciplina de egiptologia, assente num trabalho de escolástica aventureira num destino exótico. Mas não só o fascínio pela antiguidade inspirou estes escritores. A era vitoriana foi também o momento em que a era industrial ganhou raízes, dando origem à idade das máquinas. Os homens, sempre tão amantes de metáforas que nos ajudem a compreender a natureza, começaram a olhar para o mundo e para o seu corpo como uma imensa máquina, um intricado mecanismo que com a correcta aplicação de energia se animava. A recém-descoberta electricidade, cujas propriedades ainda estavam a ser exploradas, propiciava, acreditava-se, a reanimação de corpos mortos. Um pouco como mudar a bateria.
Return From The Dead reúne cinco contos de autores do final do século XIX que exploraram de diferentes formas o fascínio com os mistérios das múmias. Sobre The Jewel of the Seven Stars de Bram Stoker já falei mais alongadaemnte. Outro dos contos contidos no livro, The Mummy de Jane Webb, é uma obra perfeitamente dispensável, que mescla má ficção científica e um profundo desconhecimento sobre o antigo egipto num conto sobre a reanimação da múmia de Cheops. Na colectânea não podia faltar o jocoso Some Words With A Mummy de Edgar Allan Poe, que é mais sobre o nosso orgulho desmesurado naquilo que sabemos e a eterna descoberta que nos falta aprender muito mais sobre o mundo que nos rodeia.
Arthur Conan Doyle, hoje recordado pela criação do personagem imortal que é Sherlock Holmes, o inimitável detective, foi também um escritor de aventuras fantásticas. Outro dos seus personagens, o Professor Challenger, viveu inúmeras aventuras no planalto pré-histórico de O Mundo Perdido, e Conan Doyle também escreveu sobre temas mais tenebrosos. Dois desses seus contos, que lidam directamente com múmias.
Em The Ring of Thoth, um académico britânico adormece em pleno Louvre, cansado das suas pesquisas em velhos papiros, e ao acordar vê desenrolar-se o final de uma triste história de amor milenar, iniciada no antigo egipto e que chega ao triste fim graças a uma substância oculta no anel de Thoth, por sua vez escondido entre os panos da múmia de uma mulher. A substância continha um antídoto ao elixir da longa vida criado por Sosra, sábio egípcio condenado a uma vida eterna e que nada mais deseja do que reunir-se ao espírito da sua amada. Para o fazer, introduz-se como empregado da limpeza no Louvre, que alberga a múmia da sua amada, e perante os olhos de John Vansittart Smith encontra, finalmente, a paz da morte nos braços da sua amada.
O outro conto de Arthur Conan Doyle é o frígido Lot no. 49. Passada entre os estudantes de Oxford, centra-se em Abercrombie Smith, um atinado e cauteloso estudante, forçado a agir violentamente contra outro estudante, Edward Bellingham, cujo estudo dos mistérios do antigo egipto o leva a descobrir o segredo que permite reanimar uma múmia que, perfeito doppelganger, assassina os rivais de Bellingham.
Return From The Dead colige um conjunto de contos interessantes (excepto um) à volta do tema das múmias. A exploração da iconografia da múmia como monstro em inúmeros filmes retirou-lhe a credibilidade aterrorizante. A múmia tornou-se um daqueles ícones pop do terror, que ao contrário de Drácula ou do monstro de Frankenstein, perdeu por completo a aura de horror. Este livrinho relembra-nos os contos que inspiraram os filmes, e que deram origem ao mito da múmia enquanto monstro desencadeador de momentos de terror.