segunda-feira, 25 de setembro de 2006

The Fog

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Como realizador, John Carpenter é já reconhecido pela sua vasta obra cinematográfica. Os seus filmes parecem sempre oscilar entre filmes de culto ou filmes esquecidos. Carpenter realizou Halloween, o clássico filme que originou o sub-género slasher e onde nos introduziu a Michael Myers, o psicótico amante de facas bem afiadas, reencarnado em inúmeras iterações do filme. De Carpenter também surgiu o They Live, um dos mais acutilantes comentários ao espírito do lucro fácil e à devastação social provocada pela ganância disfarçado sob a capa de filme de acção, ou pérolas como The Thing, o paranóico remake do clássico de série B dos anos 50, e In The Mouth Of Madness, filme lovecraftiano que parodia inteligentemente o género de cinema de terror. Por outro lado, Carpenter também nos legou filmes como Christine, adaptação desinspirada do romance homónimo de Stephen King, o remake de Village of the Damned, Ghosts of Mars ou o quase intragável (para o que se espera do autor) Vampires, que embora filmes vastamente superiores à mediocridade que pervade o cinema dos géneros terror, fantástico e ficção científica não estão à altura do melhor de que Carpenter é capaz.

Por momentos esqueci-me daquela que para mim é uma das mais sublimes obras de Carpenter, o filme perfeito que é Príncipe das Trevas.

John Carpenter é um daqueles autores que têm a capacidade invejável de conseguir transmitir reflexões ideológicas e comentários sobre males sociais através de cinema de massas, que muitas vezes se perde na avalanche de blockbusters produzida em massa pelos grandes estúdios mas que é constantemente revisitado ao longo dos anos. Os filmes de Carpenter não se esgotam com uma só visualização, e é com prazer que anos depois os vamos revisitando, revendo os arrepios e identificando os subtextos críticos.

O nevoiro representa um dos pequenos terrores da natureza. Não tanto o nevoeiro em si, mas sim a capacidade das névoas de ocultarem o que nos rodeia. Por entre o nevoeiro, a nossa realidade dissolve-se, e a nossa sempre activa mente angustia-se perguntando-se o que estará por entre as brumas. Névoas são um adereço típico de histórias de fantasmas, e garantem sempre aquele ambiente tão típico das histórias de terror.

The Fog começa com uma típica história de fantasmas, daquelas destinadas a provocar calafrios na espinha antes de adormecermos na escuridão da noite. A história é contada a um grupo de crianças por Machen, um velho marinheiro cuja personagem homenageia Arthur Machen, um dos grandes nomes da ficção de terror e contador de histórias em que o horror está nos espíritos da natureza selvagem. Ficamos assim a saber que da meia-noite à uma da manhã é a hora dos mortos, a hora em que há cem anos atrás naufragou nas costas rochosas um navio que confundiu uma fogueira por um farol, quando os fantasmas dos marinheiros afogados no mar salgado vagueiam em busca de paz. Somos assim introduzidos a Antonio Bay, uma pequena cidade isolada na costa do norte da Califórnia, sublimemente filmada num cinemascope que transforma os largos horizontes das paisagens costeiras desoladas num dos mais interessantes elementos do filme. É de notar que em Os Pássaros de Hitchcock toda a acção se desenrola numa cidadezinha piscatória isolada do norte da Califórnia, uma das muitas homenagens que Carpenter faz aqui aos seus predecessores literários e cinematográficos.

Antonio Bay prepara-se para comemorar o seu primeiro centenário, honrando os marinheiros falecidos num naufrágio cujo ouro recuperado permitiu à pequena comunidade prosperar. Mas na véspera do centenário coisas misteriosas começam a acontecer. Da meia noite à uma da manhã a cidade é abalada por acontecimentos misteriosos, vidros que se partem sem razão, alarmes de automóveis que disparam sem explicção. Nessa hora, um estranho nevoeiro que parece andar contra o sabor do vento envolve uma pequena embarcação piscatória. Os tripulantes são assassinados pela tripulação de um navio fantasma. Na igreja da cidade, o padre Malone, descendente de um dos fundadores da cidade, descobre o diário do seu avô, e neste o tenebroso segredo da mentira que paira sobre a cidade.

O ouro que permitiu à cidade erguer-se proveio do assassínio premeditado da tripulação de um barco carregado de leprosos que pretendia instalar uma colónia nas proximidades da cidade. Os fundadores da cidade atraíram o barco até aos rochedos, auxiliados por um expesso nevoeiro que se fez sentir nessa noite. Não houve sobreviventes entre os leprosos, e o ouro a eles pertencente foi pilhado para proveito dos fundadores da cidade de Antonio Bay. Cem anos depois, os marinheiros regressam em busca de vingança.

O terror está no nevoeiro, e são inesquecíveis as imagens assustadoras do brilho do nevoeiro que arrepiantemente vai invandindo as ruas da cidade. O nevoeiro traz consigo os fantasmas dos marinheiros, apostados em levar consigo seis vítimas em representação dos seis conspiradores que os roubaram e os levaram ao fundo do mar. Neste aspecto, o filme resume-se a um slasher típico, com algumas mortes sangrentas e com personagens que são salvos precisamente nos momentos de maior suspense. Estes personagens são meramente esboçados, o filme não nos dando grandes vislumbres daquilo que os anima. A újnica personagem que merece mais destaque é a dona da rádio local, estratégicamente situada num farol isolado que lhe permite ver a cidade a ser engolida pelo nevoeiro e que grita desesperadamente ao microfone para que lhe salvem o filho, um papel desempenhado por Adrienne Barbeau, actriz que trabalhou com Cronenberg. Esta é o pivot em torno do qual giram os acontecimentos, e que avisa pela rádio a cidade dos movimentos do nevoeiro. Mas o filme não é apocalíptico. Em vez da aniquilação da cidade, vemos as desventuras de alguns personagens que se refugiam no presbitério do padre - um desencantdo habitante da cidade, o filho da dona da rádio local salvo por este e por Jamie Lee Curtis num dos papeis que lhe valeu o estatuto de scream queen, acompanhada pela sua mãe, Janet Leigh, a actiz icónica de Psycho de Hitchcock no papel de presidente da câmara da cidade, e a sua secretária, que se vêem avassalados pelos fantasmas dos marinheiros, até que o sacrifício do neto dos fundadores da cidade coloca o ponto final na maldição que paira sobre a cidade.

Estes seriam os ingredientes para um filme típico de terror, não fossem dois aspectos - a mestria da realização de Carpenter, que nos legou um filme com uma fotografia sublime cujos momentos de maior suspense, aqueles que nos dão o tão apreciado calafrio na espinha, não são os momentos clássicos em que os monstros/fantasmas fazem das suas, mas sim o alastrar do nevoeiro pela cidade ao som da música composta pelo próprio Carpenter, num daqueles raros momentos sublimes de perfeita sintonia entre tema, som e imagem; e o sub-texto políticamente incorrecto de uma cidade que no momento em que celebra a sua glória descobre que toda a sua história foi fundada em mentiras e crimes ocultados, uma metáfora óbvia da história americana com a sua tradição colonial de conquista de terras aos povos autóctones, e no fundo uma metáfora aplicável à história mundial - não nos esqueçamos que os vencedores escrevem a história, e que as glórias dos vencedores são as atrocidades dos vencidos. O enfrentar do verdadeiro passado é um processo violento, simbolizado aqui pelo banal fantasma assassino, mas que nos deixa sempre a pensar no que aconteceria se enfrentássemos os fantasmas do nosso passado. Pessoal ou colectivo.

Anos depois da sua realização original, e apesar das suas falhas - da caracterização superficial dos personagens numa história indecisa entre uma assombração potencialmente apocalíptica - lembremos que é a cidade que está amaldiçoada - mas forçada por óbvias razões em concentrar-se na assombração de uns poucos personagens, do ritmo demasiado acelarado do filme que não permite grandes reflexões, The Fog ainda é um filme que arrepia e obriga à reflexão. Não vi o recente remake, mas parece que não conseguiu atingir o grande nível do filme original, merecidamente considerado filme de culto.