terça-feira, 8 de novembro de 2005
O Príncipe das Trevas
Um tenebroso mistério milenar
IMDB | Prince of Darkness
Prince of Darkness
Site oficial de John Carpenter
De toda a filmografia de John Carpenter este filme, em conjunto com The Fog, é uma das obras-primas deste realizador de cinema de terror/fantástico americano.
Tudo começa com um monge de uma ordem religiosa obscura, que falece deixando às autoridades eclesiásticas uma chave para um mistério guardado à centenas de anos pela igreja no mais puro segredo. O mistério é tão secreto que apenas os membros daquela ordem o conhecem. Nem sequer as autoridades máximas da igreja católica desconfiam do mistério que guardam. O cardeal que regista a morte do monge decide investigar o que se encontra por detrás da porta que a chave abre, e descobre um artefacto misterioso que o abala até ao mais profundo do seu ser, pondo até em questão a sua crença religiosa. Incapaz de compreender exactamente o que tem à sua guarda, alista a ajuda de um físico que se interessa mais pela filosofia do que pela ciência - o tipo de físico que sublinha a relatividade na teoria da relatividade e o paradoxo no paradoxo do gato de Schrodinger. O cardeal e físico, com um grupo dos seus alunos, encerram-se durante um fim de semana na igreja onde se encontra o artefacto, para o estudarem com toda a força dos instrumentos científicos.
Em toda a cidade, repetem-se estranhos acontecimentos. Vermes e insectos começam a espalhar-se, como uma praga. Os mendigos e vagabundos congregam-se nas ruas próximas da igreja que encerra o artefacto misterioso, atraídos por um chamamento inaudível. O céu ilumina-se com a luz de uma nova estrela, uma supernova que explodiu a sete milhões de anos-luz.
Todos aqueles que estudam o artefacto são abalados até à medula pela impossibilidade e pelas consequências filosóficas do artefacto. O artefacto é um contentor de vidro com sete milhões de anos, impossível de abrir exteriormente, dentro do qual se encontra um protoplásmico líquido verde de propriedades desconhecidas. Junto do artefacto, um livro, que contém o conhecimento acumulado da ordem religiosa ao longo dos séculos e cuja tradução abala as crenças de todos os envolvidos. Pois, segundo o livro, o artefacto encerra dentro de si o príncipe das trevas, o filho do demónio, deixado à guarda dos cristãos pelo próprio Jesus Cristo. Junto destes polémicos escritos encontram-se números, que se traduzem em equações diferenciais escritas em grego antigo, operações matemáticas desconhecidas quer pelos gregos quer pelos monges medievais.
O próprio conceito de mal é abalado. Na mitologia do filme, o mal não tem uma origem espritual. É físico e palpável, e habita nos espaços interdimensionais entre os àtomos, numa realidade paralela quântica.
Numa dimensão paralela
Durante as investigações, o mal acorda, e começa a contaminar tudo o que o rodeia, numa tentativa de renascer e trazer o próprio demónio da dimensão paralela em que habita para o nosso mundo. Aqui o filme resvala para o clássico filme de possessão demoníaca/zombie/slasher, com muitas mortes sangrentas, mortos vivos e uma mulher que se vai transformando fisicamente no filho de satanás.
Enquanto isto acontece, todos os protagonistas sonham com estranhas mensagens aparentemente vindas do futuro por via taquiónica (os taquiões são particulas exóticas teórias que poderam exceder a velocidade da luz). Essas mensagens são uma visão repetiva de baixa definição, como um video mal gravado, da porta da igreja no futuro, em que se vê uma forma a sair progressivamente. Os cientistas do futuro repetem que a mensagem se destina a avisar o passado, para que consigam impedir o que está para acontecer.
O Príncipe das Trevas em todo o seu esplendor
O problema deste filme é precisamente a quantidade enorme de novas ideias e conceitos bizarros à volta do horror que formam a mitologia do filme. Temos assombrações, temos mensagens do futuro, temos possessões demoníacas, temos loucos assassinos de faca em punho, temos dimensões paralelas, e a mais bizarra de todas as ideias, a ideia do mal como uma memória genética de acontecimentos passados há milhões de anos, em guerras entre facções de extraterrestres em que o mal, a facção derrotada, foi aprisionado no nosso planeta. Qualquer um destes conceitos já dava um bom filme, mas Carpenter, talvez numa alusão subtil ao surrealismo e ao ridículo inerente a qualquer conto de terror, baralha tudo isto e cria um filme que, por vezes, parece desconjuntado e incoerente. O filme encontra-se recheado destas alusões - metade das mortes são perfeitamente evitáveis, naquele registo clássico do filme de terror em que as personagens fazem sempre exactamente aquilo que não devem; o professor de física, chefe da equipe científica que estuda o artefacto chama-se Birack, numa alusão clara a um dos pais da mecânica quântica, Paul Dirac; e, claro, dentro do artefacto o que é que encontramos senão a nossa velha amiga gosma esverdeada, a mucosa favorita de tudo o que tenha a ver com monstros?
Apesar de tudo, e apesar do desencanto com que foi recebido pelos críticos de cinema e pelo público, O Príncipe das Trevas é talvez um dos melhores filmes de terror jamais realizados. Apesar das incongruências, durante todo o filme vive-se uma aura de estranheza e suspense, exacerbada pelas bizarrias da mitologia que está subjacente ao filme. É verdade que sofre de um excesso de temas - no fum de contas, Stephen King escreve livros de oitocentas páginas só às voltas com cemitérios de animais de estimação ou carros possuídos por espíritos demoníacos (este com uma brilhante adaptação cinematográfica de... precisamente em quem estavam a pensar - é o Christine, de John Carpenter). Não se pode negar que os actores também não se esforçam muito nos seus papeis. As situações que se desenrolam no filme são desconexas, sendo por vezes difícil encontrar pontos de ligação (especialmente no final do filme). Talvez o que confira o filme a sua unicidade, levando-nos a passar por cima de todas as imperfeições e incongruências, seja a música, uma assombrosa composição de música electrónica assinada pelo próprio Carpenter. Os sons são minimalistas, mas estranhamente eficientes na concretização de um ambiente feérico e tenebroso.
Como diza Ed Wood, não interessa que o cenário caia a meio do filme ou que o actor principal não faça a mínima ideia de como actuar. O que interessa é o efeito, é isso que traz as pessoas ao cinema para ver um filme que lhes fica na memória. O Príncipe das Trevas parece enquadrar-se nesta teoria sobre o cinema. Mas claro, como Ed Wood foi reconhecido como o pior realizador de sempre... enquadrar aqui O Príncipe das Trevas talvez não seja um elogio...