quinta-feira, 17 de agosto de 2006
A Voz do Fogo
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Wikipédia | Alan Moore
Alan Moore dispensa apresentações. A sua imaginação extra-dimensional e o seu largo talento para conjurar palavras inquietantes tornaram-no no mais admirado dos argumentistas de banda desenhada vindos daquela ilha onde o nevoeiro impera. Os comics escritos por Alan Moore trazem consigo a marca do génio, e quem já leu Watchmen, V for Vendetta, A Liga dos Cavalheiros Extraordinários ou From Hell certamente que já sentiu o poder das palavras de Moore e o seu ideário muito pessoal. Ou, num registo mais acessível, a reformulação do personagem Monstro do Pântano, que revolucionou o mundo dos comics com histórias ao mesmo tempo tétricas, poéticas e ecológicas que fascinavam pelo modo elaborado como abordavam o mais básico tema de banda desenhada, o comic de super-heróis - e, de caminho, criou o lucrativo personagem John Constantine, inglês cínico que se dedica ao ocultismo modelado num Sting sempre de gabardine, tendo sido adaptado ao cinema de uma forma banal por um actor que em nada se assemelhava à personagem. Mas esta é outra história, sintomática dos atritos do génio criativo inabalável de Moore com os compromissos exigidos por uma indústria de entretenimento dominada não por homens de letras mas sim por homens de marketing, que tudo reduzem a estudos de mercado.
Neil Gaiman, conhecido autor de literatura fantástica e criador de alguns dos mais inovadores comics publicados nos anos 90 lista Alan Moore como o seu guru, a sua influência decisiva, e não está só. O génio imaginativo de Moore fascina todos os que tomam contacto com a sua obra.
Autor de comics, Alan Moore supreendeu com a publicação deste A Voz do Fogo, o seu primeiro romance. Neste livro, Alan Moore deu asas ao seu lado mais esotérico, criando uma obra inquietante e muito densa, que necessita de mais do que uma leitura para ser bem compreendida. A Voz do Fogo desenrola-se em episódios que se passam no mesmo local, Northampton, terra natal e lar do autor, ao longo de cerca de quatro mil anos. Li, algures, que a história não é linear - que o que nos parece uma linha recta em direcção ao futuro é na verdade o braço de uma espiral, que se afasta do seu centro num longo movimento circular, perceptível apenas pela repetição de certos padrões que consistentemente vão reaparecendo ao longo do tempo histórico. A Voz do Fogo parece ter sido criada a pensar nesta ideia. Os acontecimentos de há quatro mil anos atrás, uma história de sacrifício sangrento que se consuma pelo fogo, vão cíclicamente afectar o carácter e os acontecimentos da história da vila. O fogo está sempre presente, transmutado entre fogo sacrificial, fogueira de veneração a divindades, fogueira onde ardem bruxas hereges ou fogueira folgazã onde arde a efígie de Guy Fawkes, que actualiza o velho ritual, sempre presente embora oculto debaixo dos ideiais dos vários tempos. A magia, não a magia divertida dos truques de cartas e dos coelhos a saltarem da cartola, mas sim a magia visceral do homem que tenta dominar as forças mais obscuras e selvagens da natureza está sempre presente, ao longo do livro. Está presente no seu lado selvagem primordial, no lado iniciático templário, ou no lado oculto cabalístico. A magia permite-nos conhecer o incógnito, se estivermos dispostos a trilhar os seus caminhos ínvios; em parte, o livro parece-me uma viagem iniciática, que oferece vislumbres de ideários complexos.
A Voz do Fogo é uma obra apaixonante, embora não de fácil leitura, onde crianças pré-históricas se cruzam com camponeses da idade de bronze, funcionários do império romano, templários guardadores de segredos divinos, bruxas cujo único crime foi o de venerarem a natureza e não deuses de pau pendurados nas cruzes, conspiradores contra a coroa, poetas dementes, juízes lúbricos, um bígamo convencido de que o seu charme o salvará da forca, e um autor que, no último capítulo do livro, procura o sentido para a obra que escreve. É a voz de Alan Moore que confessa que a obra “é sobre a mensagem vital que os lábios ressequidos de homens decapitados ainda murmuram; é o testamento de espectrais cães pretos escrito em mijadelas nos nossos pesadelos. É sobre ressuscitar os mortos para que nos contem os seus segredos. É uma ponte, um local de passagem, um ponto gasto no tecido entre o nosso mundo e o mundo inferior, entre a argamassa e a mitologia, facto e ficção, uma fina ligadura deteriorada. É sobre a poderosa glossolalia das feiticeiras e a sua revisão mágica dos textos que vivemos. Nada disto pode ser explicado por palavras.” Decididamente, não estamos perante uma leitura leve para matar o tempo; nem tal se esperava de um escritor do gabarito de Alan Moore.
Um ponto importante na tradução portuguesa de A Voz do Fogo são as notas do tradutor David Soares, que ajudam a clarificar um pouco a obra, apontando os níveis mais profundos dos ideários, mitologias e ideias ocultas que pervadem o livro. Como já disse, A Voz do Fogo não se presta a deixar desvendar o seu sentido após uma única leitura. Suspeito que precisarei de algumas sólidas leituras, ao longo do tempo, para conseguir começar a compreender o livro. Por isso, não consigo deixar aqui nenhuma conclusão, apenas ideias soltas que me foram surgindo ao longo da leitura da obra. O que é um ponto positivo - obras literárias que não se esgotam com uma simples leitura é coisa que rareia nestes dias de cultura mediática exacerbada.