domingo, 13 de agosto de 2006

Irmãos Grimm

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The Brothers Grimm
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No nosso tempo já não restam mistérios. Já não existem lugares escuros nos mapas com a desginação aqui há tigres. Cada recanto da terra é conhecido, estudado, virado do avesso. Cada recanto da terra tem a sua coordenada de gps perfeitamente medível e reconhecível. Dos mais altos píncaros do céu os satélites tudo observam, medem, fotografam. A sede de conhecimento humana leva-nos às profundezas do oceano, aos cumes das mais altas montanhas, aos recantos mais obscuros das mais tenebrosas cavernas. Tudo é conhecido e estudado, e os próprios mistérios do universo estão sob assalto da nossa ciência perscrutante. Sem mistérios, sem recantos obscuros, paisagens assombrosas e visões arrepiantes, o nosso tempo já não é um tempo de histórias e superstições que tentam fazer compreender o temido e o desconhecido. No nosso tempo, o mistério está em vias de extinção.

Enquanto escrevo estas linhas vejo a noite caída sobre a vila, perfurara por míriades luzes. A galáxia de lâmpadas de filamento ilumina a escuridão, dissipando os medos e os sonhos mais tenebrosos. É difícil crer que até muito recentemente tudo era diferente. O cair da noite trazia os medos à tona; os recantos do mundo poderia ser habitados por perigosas criaturas, prontas para devorar os incautos viandantes. Nesta nossa era de luz e tecnologia, é-nos difícil imaginar o que sentiria nos tempos em que o cair da noite trazia consigo as trevas profundas, em que as florestas eram locais de temor natural e horrores vislumbrados numa natureza implacável e incompreensível. Tempos em que uma simples viagem sugeria perigos ocultos em cada cruzamento, em cada curva das sinuosas estradas. Tempos antigos, em que o isolamento das populações, enclausuradas nas suas aldeias no meio de vastidões de natureza selvagem era apenas quebrado por alguns voluntariosos comerciantes ou pelo mau agoiro dos exércitos em marcha. Era esse o tempo das fábulas, que expressavam a necessidade do homem em dar um sentido às acções de uma natureza inclemente. Os grandes arquétipos têm origem nesses tempos antigos em que a tecnologia ainda não iluminara a escuridão. As acções da natureza eram vistas como as acções de deuses inconstantes ou de monstros tenebrosos. Espíritos e forças desconhecidas moldavam os destinos dos homens.

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Os contos de fadas têm uma simbologia muito própria. Normalmente, pensamos nesses contos como histórias inócuas que contamos às crianças. Mas, na sua génese, os contos de fadas eram narrativas poderosas e implacáveis destinadas a transmitir às crianças o conhecimento dos perigos que o mundo lhes reservava. Nos velhos tempos dos perigos insondáveis, os contos de fada eram a barreira que separava o pequeno mundo dos homens dos vastos perigos que vagueavam pelas tenebrosas florestas densas que combriam grande parte da europa. As aparentemente inocentes histórias encerravam o conhecimento de arquétipos poderosos, conhecimento essencial para que os arquétipos não devorem as almas ignorantes. Eram os velhos tempos, antes das luzes da ciência iluminarem a natureza obscura e dos fogos da indústria arrasarem e domesticarem as terras selvagens.

Numa alemanha dividida em múltiplos pontentados independentes, unificada apenas pela língua, os irmãos Grimm foram académicos importantes, que recolheram as velhas lendas tradicionais alemãs e as publicaram de uma forma atenuada, consentânea com os gostos reservados do século XIX. Foi essa a grande contribuição pela qual os irmãos Grimm ficaram registados na história do conhecimento. Ao recolherem contos tradicionais, legaram ao mundo uma herança de narrativas de fábula que ainda hoje encanta e perdura. Lobos ameaçadores, brancas de neve, espelhos mágicos, capuchinhos vermelhos, raínhas malvadas, feitiços de encanto e sortilégios macabros. Os ingredientes imaginários perduraram, embora limpos das suas sugestões mais violentas, nos contos publicados pelos irmãos Grimm.

Terry Gilliam, ex-Monty Python e realizador de filmes delirantes como Brazil e 12 Monkeys, é conhecido pelo excesso visual quase barroco e delirante dos seus filmes. Um filme de Terry Gilliam é, garantidamente, um espectáculo alucinante de cor, o que não deixa de surpreender num realizador que é daltónico. Talvez seja por isso que Terry Gilliam aposta tanto no exagero, nos cenários luxuriantes e na atenção obsessiva nos pormenores. Os filmes de Gilliam são garantidamente belos, e este Irmãos Grimm não é excepção. Gilliam inspirou-se nos contos de Grimm e na sua vida de recolectores de lendas para... reinventar as histórias, transformando os académicos circunspectos em hérois lendários, envolvendo os irmãos Grimm no tecido das lendas que legaram ao mundo.

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Na obra de Terry Gilliam, os irmãos Grimm são trapaceiros que ganham a vida a enganar as aldeias isoladas da alemanha do princípio do século XIX, ocupada pelas tropas francesas. Aproveitando-se das superstições locais, os irmãos Grimm, com ajuda de alguns cúmplices, organizam assombrações que aterrorizam aldeões. Os imrãos Grimm, hérois de armadura brilhante dourada e com vidrinhos, combatem as falsas assombrações a troco de dinheiro. Tudo lhes corre bem, até que as autoridades de ocupação francesa os prendem, e lhes dão a escolher entre a guilhotina e os mistérios de uma aldeia alemã onde as crianças desaparecem misteriosamente. Humilhados, os irmãos Grimm encontram na floresta que circunda a aldeia a personificação do espirito das lendas: uma rainha malvada, envelhecida e imortal, que procura a eterna juventude através de um feitiço que envolve o desaparecimento de doze crianças que, numa noite de eclipse, lhe restaurarão a beleza da juventude. A floresta é um local mítico, habitado por àrvores que se movimentam furtivamente e pelo ser mais temido dos arquétipos antigos - o lobisomem, encarnação de todos os medos da natureza selvagem misturados com a maldade residente no coração dos homens. No centro da floresta, os irmãos Grimm são forçados a confrontar com a raíz dos mitos, enquanto resolvem as suas diferenças e reafirmam a sua união. Filme de fábula, Irmãos Grimm termina com o desfazer das ilusões, com a quebra do espelho que encerra o mundo para além do espelho. Os delírios do filme incluem um sensível e tétrico general francês que não hesita em declarar guerra a uma florestas - os fogos do iluminismo a iluminar as trevas a partir das pontas das baionetas, um mestre torturador italiano, descendente de uma das mais ilustres dinastias de torturadores italianos, e uma mulher selvagem, tão educada nas artes da natureza como nas artes da civilização, que conhece as velhas maneiras, os velhos saberes e os velhos mistérios.

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Isto dito, convém afirmar que Irmãos Grimm não é um excelente filme. É um filme a ver, um filme que vale pelos cenários tão típicos da imaginação delirante de Terry Gilliam e pelas imensas referências ao legado de fábulas coligidas pelos verdadeiros irmãos Grimm. No entanto, falta-lhe intensidade. Embora supreendente, o filme não é inesperado. Esperava-se um pouco mais da imaginação delirante de Terry Gilliam.