quarta-feira, 2 de agosto de 2006
Arrepio na espinha
Fascinado como sou por contos vampíricos e histórias tenebrosas, sou perfeitamente incapaz de sentir horror. As mais aterradoras descrições literárias fascinam-me pelos seus vislumbres de ambientes tenebrosos onde seres depravados se orgulham dos seus mais baixos instintos. Mas não me assustam. Ler sobre vampiros, fantasmas, mortos-vivos, seres de além do espaço ou depravações de homens malvados é sempre fascinante. Há nesses contos um apelo da curiosidade sobre o desconhecido, uma fascinação sensual e mórbida, que me leva a revisitar algumas das obras dos autores do género. Passa-se o mesmo com o cinema. Por muito assustadores que pareçam, os filmes de terror difícilmente me provocam arrepios na espinha. A explosão sangrenta da cabeça de um zombie não passa de um agregado de colorante vermelho e borracha e plásticos moldados a ser rebentado. As sensaçõews de terror são o efeito de montagens inteligentes com música adequada, e aqui quanto mais subtil melhor: a visão do monstro num apoteótico CGI nunca é tão fascinante como a subtil sugestão da existência do monstro obtida através de ângulos de camera inteligentemente montados que nos oferecem vislumbres do desconhcido. Mas não deixo por isso de gostar de um bom livro ou de um bom filme de terror, ou até mesmo de obras mais camp que parodiam intencionalmente ou não, os géneros mais obscuros de ficção. Nunca cesso o meu fascínio pelas obras de autores como Edgar Allan Poe, Bram Stoker, H. P. Lovecraft, Arthur Machen ou Lord Dunsany, citando os mais clássicos, ou Neil Gaiman, Stephen King, Clive Barker e Richard Matheson, citando os mais contemporâneos (e aos quais humildemente junto David Soares, cujo livro me fascinou). O mesmo se passa com o cinema, onde filmes mais obscuros disputam a minha admiração com o melhor cinema que se faz ao longo da história deste media - uma frase pomposa que me permite colocar em pé de igualdade George Romero (The Night of the Living Dead) e, por exemplo, Fellini.
O que é que nos leva a estes gostos mórbidos? Crenças obscuras demasiado arreigadas na alma para serem extirpadas com os bisturis do saber e da razão, uma curiosidade quase obscena pelo que é oculto, a vivacidade da imaginação no sonhar de espaços imaginários, uma catarse que permite à alma purgar-se das pulsões violentas que a afligem.
É de não esquecer de o célebre Marquês de Sade, autor de horrendas visões onde a sexualidade se unia à perversão de todos os sentidos numa celebração de sensualidade mórbida e selvagem, se aterrorizou perante os excessos e a violência da revolução francesa. As palavras tenebrosas saídas da sua imaginação não espelhavam uma alma tenebrosa, antes pelo contrário. Confrontado com a aplicação muito real do que descrevia em fantasias, De Sade revoltou-se contra a estupidez e violência mórbida dos revolucionários da guilhotina. Por outro lado, a apetência humana por espectáculos mórbidos já vem de longe. Já que falei na Revolução Francesa, é bom relembrar as tricotteuses, que tagarelavam e tricotavam alegremente enquanto a guilhotina fazia rolar as cabeças dos nobres. Por outro lado, as verdadeiras super-produções que eram os autos-da-fé, onde se queimavam os hereges condenados pela inquisição, atraíam multidões a um animado terreiro do paço. Ao longo da história, as execuções públicas, os autos-da-fé e os actos de tortura horripilante que antecediam a misericordiosa morte dos condenados foram sempre espectáculos concorridos, observados por uma assistência ululante que se divertia com os tormentos enquanto ia debicando manjares adquiridos aos vendedores de rua que se acotovelavam perto dos patíbulos. Apesar do objectivo destas cerimónias ser mais pedagógico do que de fornecer diversão - os tormentos do patíbulo eram um sóbrio lembrete do que poderia acontecer a quem se opusesse ao estado, ao rei, ao senhor local ou à igreja, a verdade é que estes eram momentos de festa bem aproveitados pelas turbas que se compraziam com o espectáculo da dor alheia.
Os horrores imaginados são inócuos; diversões, catarses ocasionais, pequenas distracções das reponsabilidades da vida. O verdadeiro horror está na capacidade humana para o mal - para os eternos conflitos, para a destruição ambiental, para a cupidez, para o mal que se faz ao próximo. As imagens dos telejornais são verdadeiramente assustadoras, especialmente se comparadas às inocentes iconografias dos filmes de terror; os artigos noticiosos ultrapassam em muito as trevas e a morbidez das mais elaboradas obras literárias do género. A ciência e o conhecimento fizeram-nos ultrapassar o medo das trevas e do desconhecido; agora, o terror que nos resta é aquele que infligimos a nós próprios.
(Um post inspirado pelo ensaio A História do Terror da autoria de Paul Newman e que serve em resposta a um desafio lançado há já um certo tempo pelo Groovy Age of Horror, um blog que se inspira nos aspectos mais kitsch do horror e que eu preguiçosamente não leio tantas vezes como deveria.)