domingo, 20 de agosto de 2006
Adeus a um século conturbado
Lilian Lee, Adeus, Minha Concubina, Edições ASA, 2002
ASA | Adeus, Minha Concubina
IMDB | Ba Wang Bie Ji
A história de amor é o tema mais batido em todos os campos artísticos. Romances de amor é coisa que não falta nos escaparates das livrarias ou nas prateleiras das bibliotecas - aliás, a palavra romance por si só já é sinónimo de amor. A música popular banaliza o amor, as telenovelas, cuja visão faz certamente diminuir o quociente de inteligência dos espectadores, vivem e alimentam-se das intrigas à volta de amores e desamores. O amor inspira a pintura, inspira opera, inspira orgias consumistas. Essencialmente, o amor vende, porque atrai as atenções. Qualquer coisa que tenha a ver com amor tem lugar garantido no saturado espaço de ideias que constatemente competem pela nossa atenção.
Por si só, obras sobre o amor não me despertam a atenção, culpa da eterna banalização do tema. Mas a história de amor que está no cerne do livro Adeus, Minha Concubina está envolvida num contexto maior, na história da China do século XX. As vidas e vicissitudes dos personagens acompanham as vicissitudes da vida num país que mergulhou no caos durante a maior parte do século XX. Amantes das desventuras amorosas encontrarão neste livro alimento para os seus gostos; mas o grande valor deste livro está em tudo o que rodeia o cerne amoroso.
Nas primeiras décadas do século XX, uma prostituta procura uma vida melhor para Xiao Douzi, o seu filho, deixando-o numa escola muito especial. Nessa dura escola Xiao Douzi aprende a ser um grande actor da Ópera de Pequim. O caminho é àrduo, mas Xiao Douzi será ajudado por Xiao Shitou, um rapaz mais velho que o protege. Juntos, são treinados para os papeis de maior prestígio da Ópera de Pequim. Douzi fora treinado no papel de dan, heroína dos dramas de ópera, e Shitou assumia o papel de héroi. A Ópera de Pequim é uma instituição muito peculiar. O nosso conceito de ópera envolve grandes produções baseadas no trabalho de compositores e libretistas. Os actores são escolhidos com base nas suas vozes, e têm bastante liberdade na interpretação dos seus papeis. O conceito chinês é muito diferente. Os dramas de ópera chinesa baseiam-se em histórias centenárias, que os actores memorizam e repetem sem alterarem a forma de representação. Os actores são especializados em papéis próprios - o héroi, a heroína, o vilão, os ajudantes. A ópera tradicional chinesa é um espectáculo que se mantém inalterado há séculos, um espectáculo exuberante de fatos exóticos, maquilhagem estereotipada, dança e artes marciais. E, tal como no teatro tradicional japonês, todos os papeis são representados por actores - mesmo os femininos. Douzi e Shitou são frequentemente um casal em palco. Actores de génio, as suas melhores representações são as da ópera trágica Adeus, Minha Concubina, em que Douzi é Yu Ji, a bela concubina de um general derrotado representado por Shitou. Entre os dois existe cumplicidade e amor, que no caso de Douzi é mais do que amor fraternal. O casamento de Shitou com uma ex-prostituta enfurece Douzi, que se isola cada vez mais no mundo decadente da ópera chinesa. Mas as tragédias do amor não são suficientes - as tragédias da hitória chinesa são o que vai mergulhar os personagens no caos, e os vão levar aos limites do sofrimento, sem que no entanto se desvaneça a forte ligação entre os dois actores.
A China do século XX está recheada de locuras e atrocidades. Após a queda dos imperadores chineses e a implantação da república em 1911, a China mergulhou num turbilhão de guerra que faz os recentes conflitos na ex-Jugoeslávia parecerem brincadeiras de crianças. Durante décadas, a China foi varrida pelos exércitos dos senhores da guerra, numa guerra civil sem fim que só atenuou com a ditadura nacionalista de Chang Kai Chek. Empobrecido, fracturado e devastado, o país ainda sofreu a violenta invasão japonesa e a guerra civil entre nacionalistas e comunistas. A invasão japonesa foi simplesmente atroz. As forças ocupantes japonesas deixaram atrás de si um rasto de atrocidades a uma escala incomparável, mesmo dentro do contexto de uma guerra mundial que legou ao mundo o pesadelo de Auschwitz. Na escala da maldade que o homem é capaz de infligir ao próximo, Auschwitz empalidece perante Nanking. É comparar o incomparável, eu sei, mas Nanking foi um momento mesmo muito negro na história mundial, apesar de pouco discutido. Finda a ocupação japonesa, a China foi varrida pelo exército vermelho, que empurrou os nacionalistas para Taiwan. Durante estes anos, a população sofreum debaixo de vários regimes sangrentos, empobrecida por um estado de guerra permanente. Cada novo regime trazia as suas purgas, os seus massacres, os seus tirantes sedentos de sangue e poder. E o regime trazido nas pontas das baionetas do exército vermelho trouxe consigo o regime Maoista, que legou ao mundo a infame revolução cultural, uma década de caos que arruinou a China com as suas abjectas perseguições políticas a todos os elementos considerados reaccionários pelos padrões mutáveis dos Guardas da Revolução. A China moderna, potência económica e militar em ascensão, assenta sobre os cadáveres dos milhões de chineses que pereceram nos fogos que varreram o imperio do meio durante o mais conturbado século da sua história.
Em Adeus, Minha Concubina assistimos ao caos dentro do mundo isolado da Ópera de Pequim. Os actores entretêem, e encontram sempre público, mesmo nas épocas mais difíceis. Em sociedades em permanente destruição a ideia de amanhã desaparece; é fácil mergulhar na decadência boémia. É esse o mundo de Adeus, Minha Concubina, um mundo de vícios, de fumos de ópio e de ilusões fáceis, que se desagrega perante o horror da imposição ideológica maoista. Adeus, Minha Concubina é a linha da frente do sangrento choque entre as tradições e as revoluções. É apropriadamente trágico, e termina de forma pouco feliz numa China que tenta reencontrar as suas tradições por entre os arranha-céus do desenvolvimento económico.
Adeus, Minha Concubina tem também um lugar especial devido à sua adaptação cinematográfica. Quando, há anos atrás, as luzes se apagaram e subiu o pano que ocultava o ecrã do Nimas Adeus, Minha Concubina foi a minha introdução ao cinema chinês. Fiquei para sempre maravilhado pelo espectáculo exuberante do file de Chen Kaige.
(A reedição deste Adeus, Minha Concubina e de outros livros deve-se a uma iniciativa de puro marketing por parte de uma marca de yogurtes, que conseguiu colocar livros no sítio mais incongruente - nas prateleiras dos refrigrados dos supermercados portugueses. Bibliófilo profundamente viciado em caracteres impressos como sou, não consegui resistir ao canto da sereia. Cá por casa anda tudo surpreendido com a minha recente paixão por yogurtes.)