quinta-feira, 1 de junho de 2006

Náusea

Decididamente não me pagam para isto, pensei enquanto mergulhava as mãos numa cinzenta àgua fétida, tentando retirar a nauseabunda pasta cinzenta. Os trabalhos por vezes correm mal, e este correu mesmo mal. A pasta de papel, que tanto trabalho deu a preparar, encontrava-se mergulhadinha dentro de àgua a amolecer, mas os dias de calor abominável que estiveram nestes dias tiveram o condão de me apodrecer a mistela. Em vez de pasta de modelar acinzentada, conseguida através da reciclagem do papel, só consegui uma mistela fétida, com um cheiro capaz de fazer inveja a um qualquer esgoto que se preze. Por momentos, cheguei a temer encontrar dentro da mistela o cadáver putrefacto de um qualquer animalejo, ou de algum aluno mais mal comportado, misturado com a pasta cinzenta de papel.

Enquanto mergulhava as mãos na àgua fétida, tentando limpar a sala daquele autêntico nojo com ajuda de alguns alunos mais corajosos, não fui capaz de não pensar no corrente clima de guerra aberta entre o ministério e a classe docente, em que cada nova declaração da ministra ou de qualquer um secretário de estado é ofensa certa à nossa classe. Eles andam imparáveis - tem sido cada tiro, cada melro, desde a insanidade das avaliações paternais às acusações de perfeito desleixo profissional proferidas pela ministra num encontro educativo. Ora, se eu fosse o professor prototípico que o ministério quer fazer crer ao país que caracteriza a classe docente, as minhas aulas seriam passadas a ler o jornal (de preferência A Bola) enquanto mandava os alunos fazer umas riscalhadas - uns desenhos, pronto, desenhem lá aquilo que quiserem e estejam é mas é calados. Assim, as minhas aulas não seriam passadas numa roda-viva a preparar materiais e condições para que os miúdos consigam fazer trabalhos interessantes. É este o meu triste destino de professor, pensei, enquanto o meu estômago se torcia em nós perante o odor nauseabundo que vinha do alguidar. Sou insultado por quem me tutela, desrespeitado pela sociedade que me rodeia, e ainda passo horas a limpar coisas abominávelmente nojentas.

Ocorreu-me pegar naquela fétida pasta cinzenta, acondicioná-la mesmo como deve de ser e levá-la à estação dos correios que fica mesmo ao lado da minha escola. Endereçava a encomenda ao gabinete da senhora ministra (que é apenas ministra e cada vez menos senhora) e assim, mal ela a abrisse, saberia pefeitamente o que é que eu e os meus colegas pensam dela e dos seus sequazes. Infelizmente, o saco ainda era pesado e o meu obeso salário de professor não me permite veleidades como a aquisição de selos para tão grande peso.