sábado, 17 de junho de 2006

Luta renhida

Guardian | Artful Deco leads Portugal into last 16 Um artigo que captura na perfeição o espírito do jogo.

Diz-se que os campeonatos entre selecções nacionais são uma forma catártica de exorcizar as velhas pulsões violentas associadas aos nacionalismos. Os velhos tempos eram os das clássicas disputas do tipo os meus soldados são mais fortes do que os teus, as minhas armas devorar-te-ão a ti e a todos os da tua laia numa tempestade gloriosa de chamas, os meus tanques esmagarão os vossos crânios ocos, nós prevaleceremos após uma tempestade de fogo atómico sobre um planeta devastado. Nestes novos tempos, os confrontos militares foram substituídos por campos de batalha bem definidos, onde onze campões de cada nação se defrontam até à vitória hegemónica ao som de hinos nacionais ululados por multidões que acenam bandeiras e clamam pela glória do seu país. Se assim for, talvez possamos julgar o carácter de um país pela sua prestação da sua selecção em campo, o que não sugere muito bons augúrios sobre as intenções nucleares iranianas.

Depois de ver a estranha prestação dos jogadores de futebol da selecção iraniana, em grande parte alicerçada numa constante provocação de faltas, imaginei Jerusalém debaixo de um cogumelo nuclear. Em campo, os jogadores iranianos rebolavam-se pelo chão, fingindo-se agredidos pelos portugueses, enquanto aproveitavam todas as oportunidades para agredir os jogadores portugueses. A selecção iraniana era tecnicamente inferior à selecção lusa, mas a sua resposta foi genial - perante um desafio inultrapassável, cerraram fileiras numa defesa renhida e aproveitaram todas as magras oportunidades que lhes foram concedidas pelo acaso do jogo. Mesmo assim perderam, com uma merecida e emocionante vitória portuguesa. Um brilhante e emocionante jogo, que terminou com dois a zero a nosso favor, com um possível terceiro golo marcado nos últimos segundos do jogo.

Se os iranianos são assim no campo de futebol, ainda mais perigosos e traiçoeiros são no campo político, o que explica as contemporâneas complicações às voltas com o potencialmente letal programa nuclear iraniano.

Para um indiferente ao futebol como eu, é com uma pontinha de vergonha que confesso ter vibrado com o jogo. Ao ver a luta renhida entre as duas equipes, ao ver o trabalho de coerência e empenho dos jogadores portugueses, ao ver o seu esforço no dominar da equipe adversária, fiquei com a sensação que percebi porque dizem que o futebol é o beautiful game. Ver o espírito da equipe, a forma muitas vezes genial como coordenavam o que para mim parecia uma distribuição aleatória de homens em campo, ver a perfeição técnica e atlética de jogadores que são os melhores entre os melhores, fiquei a gostar um bocadinho de futebol. Não o suficiente para me tornar fanático dos clubes ou para saltar para a rua a abanar a bandeira e a cantar o hino nacional, convencido que os portugueses são os maiores e que, na imortal expressão popular, comem todos os outros. Fiquei sim a gostar de ver os melhores a mostrar-se no seu melhor.

Note-se que o comem é uma expressão de uma profundidade assombrosa. Especialmente se associada a disputas onde ferve o caldeirão dos sentimentos nacionalistas, onde as alusões sexualizantes de homens que comem, e assim envergonham, o inimigo assumem contornos de extrema profundidade semântica.