quarta-feira, 14 de junho de 2006

Em Greve

Publico | A propósito do Estatuto da Carreira Docente: mudanças a sério ou mais do mesmo?
Google News | Notícias sobre a greve de professores
Fenprof

Hoje estou em greve. Contráriamente ao que me é habitual, decidi juntar-me ao protesto dos professores, numa decisão que moralmente me foi difícil de tomar. Tendo sido educado numa família de valores conservadores onde o cumprimento de deveres e a ética de trabalho eram primordiais, é-me muito dificil esquecer os meus deveres laborais e parar em protesto. Tenho de ter razões mesmo muito fortes.

Não posso dizer que há uma razão fortíssima que me leve a fazer greve. Até me é fácil invocar uma série de razões que me impediriam de fazer greve. Em primeiro lugar, a falta de visão estratégica dos sindicatos ao marcarem uma greve entre feriados, em vésperas de fim de semana prolongado. É o tipo de atitudes incompreensíveis que os nossos sindicatos tomam que não nos valorizam nem nos dignificam perante a opinião pública. Outra grande razão para não fazer greve está na minha concordância com parte das medidas que o ministério da educação têm anunciado. Sejamos honestos: o regime de progressão na carreira que as novas propostas visam substituir é absurdo. Até agora, bastava acumular anos de serviço, um relatório e créditos aquiridos em acções de formação para transitar de escalão de forma quase automática. Não interessava a nossa dedicação à escola, a nossa dedicação aos alunos. Quanto às acções de formação, a grande maioria era simplesmente uma fantochada - acções perfeitamente anódinas cujo único objectivo era assegurar o almejado crédito. Não me importo nada com um apertar das regras de progressão, com novas regras que valorizem o mérito do trabalho diário com os alunos e que recompensem o trabalho efectivo, em vez das vacuidades académicas típicas do ambiente melindroso das acções de formação.

Só que...

Só que do oito, iremos passar aos oitenta, se o ministério levar a sua proposta avante. O que se propõe, disfarçado sobre uma conveniente cobertura de meritocracia, é um apertar de carreiras docentes que visa a mera diminuição de custos a médio e longo prazo. A questão das quotas de avaliação é um exemplo flagrante. Junte-se a isso a famigerada avaliação por parte dos encarregados de educação, que revela uma visão perfeitamente irreal do ministério sobre a realidade nacional, conjuguemos com outros atropelos (exoneração de lugar de quadro se no primeiro ano não tiver avaliação bom, assiduidade de 97% para boa avaliação, quadros de agrupamento, formação apenas nas interrupções lectivas, exames de acesso à profissão) temos aqui ideias absurdas. A assiduidade do docente ser um critério de avaliação é uma boa ideia, mas que deveria ser bem aplicada - por falta pensamos logo num professor baldas, mas não num professor com problemas de saúde ou numa professora, mãe de filhos. Embora tudo isto sendo ainda é passível de negociação, são grandes razões para paralisar.

Creio que a outra grande razão que me levou hoje a recusar-me a fazer-me à estrada para fazer aquilo que tanto gosto, dar aulas de expressão artística, é o desprezo generalizado que sinto pela minha profissão. Não um desprezo meu, entenda-se, mas um desprezo a que somos votados pelos media, sempre prontos a empolarem-nos como uns coitados ou como uns ineptos que sugam dinheiro aos contribuintes. Um desprezo a que somos votados pelo ministério que nos tutela, que é o primeiro a utilizar tácticas de desinformação para denegrir a classe docente. E também um desprezo a que nós próprios nos votamos, ao deixar todas as nossas decisões nas mãos de superiores, ao alardear o nosso profissionalismo mas sempre à custa de reconhecimento superior.

Se queremos ser valorizados como classe, temos de ir à luta, dar o exemplo. No meu dia a dia, faço isso tentado ser o melhor professor que consigo. Neste dia, faço-o fazendo greve.

Não me considero um professor excepcional, um exemplo para toda a classe. Sou apenas um professor consciencioso, que se dedica racionalmente ao seu trabalho. Tento não faltar. Chego até a dar dias à escola, quando preciso de faltar a reuniões, e não me importo muito com isso - o que eu não quero é pôr em causa os trabalhos dos alunos. Esforço-me por permitir novas aprendizagens aos alunos, muitas vezes a custo de alguma tranquilidade na sala de aula. A título de exemplo, seria muito mais fácil para mim colocar os alunos a desenhar postais de natal do que ensiná-los a modelar figuras em papier-maché, mas prefiro vastamente a segunda actividade à primeira. Na segunda actividade, as aprendizagens de novas técnicas são muito mais alargadas e as hipóteses de criatividade aplicada, o thinking outside the box, muito mais abrangentes do que numa actividade que se resume ao desenho. Agora, o nível de confusão na sala de aula é muito superior com o papier-maché, tal como o meu desgaste. Não quero com isto parecer que me considero um criador de excepcionais actividades lectivas; antes, quero com isto mostrar que perante o que para gerir é fácil, e o difícil, escolho o difícil, porque permite aprendizagens mais ricas, dentro da minha àrea que antes de mais deve ser um estímulo à criatividade. Tenho deixado boas memórias nas escolas por onde tenho passado, o que é um indicativo de que até devo trabalhar bem, mas nunca deixo de pensar que tudo o que faço, poderia fazer melhor, e nunca deixo de o tentar fazer melhor.

Dedico-me à minha carreira, mas pelo que vejo, as nuvens cinzentas que se erguem sobre a profissão docente auguram um mau futuro. Gostaria de daqui a uns anos ainda ter uma carreira.