terça-feira, 16 de maio de 2006
Na Terra dos Sonhos
Dagonbytes | The Dream-Quest of Unknown Kadath
Wikipedia | The Dream-Quest of Unknown Kadath
HPLA | Writings of H. P. Lovecraft
Já conhecia a obra de H. P. Lovecraft de fama muito antes de ter virado a primeira página cheia da sua prosa filigranada. Durante anos, vasculhei as prateleiras de boa parte das livrarias lisboetas em busca dos sonhos e horrores lovecraftianos, em vão. Só muito recentemente é que começaram a surgir traduções para português das obras de Lovecraft, e também só há pouco tempo é que as prateleiras das livrarias se encheram com alguns paperbacks altamente perecíveis que coligiam alguns dos contos macabros do autor. Durante muito tempo, a única tradução portuguesa das obras de Lovecraft foi a de Jorge Silva Melo para a colecção Livro-B da Editorial Estampa, intitulada Os Demónios de Randolph Carter. A colecção Livro-B era composta por uns livrinhos de formato pouco convencional, de capa preta e páginas azuladas que ainda se podem encontrar esquecidos nas prateleiras empoeiradas de livrarias recônditas e reunia autores tão díspares como Boris Vian, Jorge Luis Borges, Lovecraft, Balzac ou até mesmo o insuspeito Stendhal. Foi com esta tradução que eu finalmente conheci a obra de Lovecraft, de uma forma que me deixou surpreendido.
Lovecraft é imediatamente equacionado com horrores tenebrosos do além espaço, com contos macabros escritos num estilo barroco e filigranado cheio de expressões hiperbólicas que tentam retratar horrores inomináveis. Quando se fala de Lovecraft fala-se logo de Cthulhu, essa estranha divindade de além-espaço que inspirou inúmeras obras de Lovecraft e de outros autores por ele inspirados, e que permite inclusivamente organizar a obra de Lovecraft numa cronologia fictícia conhecida como os mitos de Cthulhu. Mas não foi esta a minha introdução aos horrores primordiais de Lovecraft.
No livrinho que já referi encontram-se quatro contos, O Depoimento de Randolph Carter, Em Sonhos, à Procura da Desconhecida Kadath, A Chave de Prata e Através das Portas da Chave de Prata. Os conhecedores da obra de Lovecraft sem dúvida que já se lembram dos títulos originais destes contos; aos restantes, não os enfadarei com os títulos originais. De todos estes contos, o que me fez apaixonar pela prosa de Lovecraft foi o curiosamente intitulado Em Sonhos, à Procura da Desconhecida Kadath (The Dream-Quest of Unknown Kadath no seu original).
Em Sonhos, à Procura da Desconhecida Kadath é um mergulho num estranho mundo onírico que pouco tem a ver com os encantamentos aterrorizantes de um Lovecraft mais... convencional e que tem muito mais a ver com as estranhas fantasias de Lord Dunsany ou com os sonhos feéricos de As Mil e Uma Noites do que com a restante obra de Lovecraft. Em Sonhos, à Procura da Desconhecida Kadath não trata de loucuras inomináveis para além do espaço-tempo ou de criaturas enlouquecidas que propiciam o fim da humanidade. Antes, leva-nos para dentro da alma de Randolph Carter, explorador extraordinário das terras que estáo para lá dos sonhos e um excelente membro da galeria dos personagens literários semi-esquecidos com sabor a século XIX, a par com Alan Quatermain, Arthur Gordon Pym, Cavor ou Arsène Lupin.
Em Sonhos, à Procura da Desconhecida Kadath transporta-nos para um mundo de belezas inomináveis, criaturas monstruosas, cidadelas feéricas e terras estranhas que Randolph Carter atravessa na sua incansável busca por Kadath, cidade de estrnhas perfeições e doces recordações que lhe atormenta os sonhos. Para chegar a Kadath, coisa que ninguém que o tenha feito regressou para contar a história, Carter tem de ir literalmente até ao fim do mundo dos sonhos, um mundo a que só temos acesso se ultrapassarmos a barreira do sono, expondo-nos aos perigos dos deuses imprevisíveis e da loucura de Azatoth, deus cego e louco que reina nos profundos abismos do negro caos e fielmente servido por Nyarlatothep, deus sádico dos enganos tenebrosos. Randolph Carter enfrenta todos os perigos e vai mais longe do que até então tinha ido no seu mundo de sonhos, e no final consegue o seu objectivo - encontra Kadath, que afinal não é a cidade fantástica dos seus sonhos mas sim uma ruína abandonada no fim boreal do mundo, pois os benévolos e caprichosos deuses haviam abandonado Kadath para passar a residir na cidade dos sonhos de Carter, um local que lhe é revelado como a soma das suas primeiras impressões de infância de Boston e da Nova-Inglaterra mitológica de Lovecraft.
Em Sonhos, à Procura da Desconhecida Kadath não é um livro que faça muito sentido, e aí reside o seu grande poder. A mítica viagem de Randolph Carter daria para contar inúmeras histórias; o livro poderia ser um daqueles catrapázios recheados de milhares de folhas de prosa que descreve os mais ínfimos detalhes da mais curiosa espira do mais obscuro templo da mais estranha cidade de habitantes mais bizarros das terras que estão para lá do sono. Mas Lovecraft apenas esboça as maravilhas e os horrores que descreve, tantalizando assim a imaginação do leitor, que corre atrás de Randolph Carter, desejoso de se demorar só mais um bocadinho nas paisagens surreais descritas por Lovecraft mas incapaz de fugir ao passo rápido de Carter em direcção a novas maravilhas.
Em Sonhos, à Procura da Desconhecida Kadath retoma a sensação de simples maravilha que temos ao ler os relatos fantasiosos de Sindbad ou as terras imaginárias descritas ao longo dos séculos. A terra dos sonhos, de Kadath, Leng, Inquanok, do mar Cerenariano ou da lua tenebrosa habitada por horríveis criaturas disformes e esponjosas, é uma terra que não existe mas que deixa a nossa alma sequiosa por conhecer as suas estranhas paisagens. E aqui reside a beleza deste conto de Lovecraft, a beleza dos sonhos feéricos, que passam mas deixam sempre uma marca luminosa na nossa alma.
Quando dormem, ou quando acordam, nunca vos sucede que os sonhos em que estiveram mergulhados durante a noite vos pareçam mais reais do que a cinzenta e convencional realidade?