Não sei porquê, mas insisto sempre em cortar o cabelo em barbearias antiquadas, daquelas à antiga, com uma ou duas velhas cadeiras de barbeiro e latas de laca e tónico para cabelos manufacturadas algures nos anos sessenta. Decididamente, não sendo um homo metrosexualis, não me apanham a tonsurar a lanzura capilar num desses estabelecimentos da moda, com decoração de capa de revista. Além do mais, um corte de cabelo num barbeiro à antiga assegura duas coisas: um daqueles cortes de cabelo ao qual só nos habituamos duas ou três semanas depois, e uma janela única sobre a vida das pequenas comunidades.
Uma barbearia clássica ainda hoje funciona como um misto de centro de dia e café. Dentro da barbearia, são muitas vezes mais os passantes que param para dizer bom dia e dar dois dedos de conversa do que os clientes que aguardam o corte de cabelo. o ritmo é relaxado, com o barbeiro a contar novidades e a dar dois dedos de conversa entre cada toque de tesoura. Cortar o cabelo nestes locais não é uma experiência rápida, mas permite-nos sentir a textura do dia a dia de uma vila.
Hoje lá me desloquei à Barbearia Neves, duas ruas a seguir ao largo da furnas, para um corte que o meu cabelo já estava desesperadamente a precisar. No tempo que lá passei, apercebi-me depressa das novas tendências da sociedade ericeirense - não a alta sociedade (se é que esta existe), mas a verdadeira sociedade de pescadores e reformados que se congrega nas imediações. Não fiquei a saber de nada profundamente revolucionário. O dia a dia é feito de pequenas coisas, pequenas ideias e pequenos gestos. Fiquei a saber que os ericeirenses olham com cada vez mais desconfiança para aqueles que vêm de fora, se instalam na terra e olham os da terra com ares superiores (aqui, encolhi-me na cadeira e tentei passar despercebido). Fiquei a saber montes de coisas sobre o futebol, que prontamente esqueci - é complicado, perceber toda a litania de jogos perdidos e ganhos, tentando descortinar de quem é a culpa por se ter perdido um jogo. Pensava eu, na minha inocência futebolística, que a culpa era sempre do àrbritro, mas aparentemente não é bem assim. Fiquei a saber que a barbearia é frequentada pelo arroz-doce, um pombo branco pintalgado de penugem preta, que entra livremente dentro da barbearia em busca de umas migalhas. Um dos passantes prontificou-se a ir compra milho para o pombo, e regressou minutos depois, com um saco de milho. Infelizmente o pombo já havia partido para outras paragens em busca de comida. Fiquei também a saber que o barbeiro anda furioso com os companheiros. Após a derrota da sua equipa de futebol, alguém lhe pregou uma partida de gosto duvidoso, colando na sua porta uma daquelas cruzes que sinalizam o luto por algum familiar. A brincadeira não agradou muito ao barbeiro, que mirava cada um que entrava na barbearia com olhos assassinos, completando com palavras que sondavam a pessoa, para que se soubesse quem é que tinha tido a bela ideia de deixar uma cruz à porta da barbearia. Também fiquei a saber que os jogos do Chelsea, graças ao seu treinador português, são fielmente seguidos pelos amantes ericeirenses do futebol.
O barbeiro, em si, é uma personagem curiosa. Apesar de ser novo, talvez mais do que eu, mantém um curioso espaço onde o tempo parece parar, onde as velhas tradições do barbeiro como o centro informativo da vila não se perderam, completo com um rádio sempre ligado numa qualquer estação profundamente clássica.
Estas viagens à barbearia são para mim um fascínio. Representam uma preciosa janela sobre o que faz pulsar uma comunidade onde vivo, mas à qual jamais pertencerei. Quanto ao corte de cabelo, bem... quando entrei em casa, a cadela não me reconheceu e largou-se a ladrar. Algumas horas depois, já parece reconhecer-me, mas olha-me, desconfiada. Creio que no seu íntimo ela suspeita que o seu dono foi raptado por extraterrestres e que a figura que vê é um alienígena disfarçado. Parece-se com o dono, cheira dono, mas falta-lhe qualquer coisa...