domingo, 26 de março de 2006
Holy Fire
Wikipedia | Bruce Sterling
Beyond the Beyond
The Bruce Sterling Online Index
World Changing
Se existe alguma trindade dos deuses da ficção científica cyberpunk, nessa trindade Neal Stephenson seria o contador de histórias; William Gibson, apontado como o autor do termo cyberpunk, seria o ídolo pop, a face do cyberpunk. Finalmente, Bruce Sterling seria o ideólogo, o autor cujas ideias modelam este campo literário. A influência de Sterling estende-se para além do campo da ficção científica. Colabora com a Wired, mantém um blog, o Beyond the Beyond e colabora com o World Changing, um site dedicado a estudar as novas tendências ambientais, económicas e sociais que nos estão a afectar.
Autor de uma vasta obra de ficção científica onde pontuam livros como The Artifial Kid, Islands in the Net ou Schismatrix, Sterling não um autor de leitura fácil. O melhor papel de Sterling é o de ideólogo. Cada um dos seus livros rebenta pelas costuras com ideias de vanguarda social e tecnológica, com elaboradas construções teóricas que se projectam em futuros plausíveis e não muito distantes. Bruce Sterling é um optmista tecnológico - embora reconheça e explore com diferentes níveis de profundidade as alterações radicais que a tecnologia implica ao nível da sociedade, as suas visões tecnológicas são sempre benéficas e causadoras de profundos saltos evolucionários na humanidade.
Parte das ideias que compõem Holy Fire já são hoje uma realidade. Sempre que se discute o problema do colapso dos sistemas de reforma, enfrentamos o facto de o desenvolvimento social e económico ter elevado na sua generalidade o nível e a qualidade de vida da maioria da população, o que implica que envelhecemos cada vez mais tarde e com cada vez maior qualidade de vida. Até mesmo em portugal, país com o seu crónico atraso de cinquenta anos em relação ao resto do mundo desenvolvido e que ainda empacota grande parte da sua população idosa em armazéns eufemísticamente chamados de "lares", se começa a notar esta tendência. Junte-se a esta tendência advinda dos esforços acumulados de quase um século de saúde pública organizada às pesquisas de técnicas destinadas a prolongar a vida humana muito para lá do seu tempo normal, e temos os ingredientes para o ideário de Holy Fire.
Holy Fire acompanha a crise de identidade de Mia Ziemann, uma analista medico-económica que trabalha para o complexo medico-industrial que alicerça a sociedade gerontocrática do mundo futuro. Mia, ponderada e equilibrada, conhecida pelos seus prudentes investimentos em tecnologias de estensão de vida de resultados moderados mas perfeitamente garantidos, decide aos noventa e sete anos dar um passo radical. Após a morte de um amigo e antigo amante, Mia oferece-se como cobaia para um novo e ainda experimental processo de rejuvenescimento celular que lhe ofereçe, literalmente, a juvente. Mia submete-se ao tratamento como uma mulher de noventa e sete anos (embora com o corpo de uma mulher de quarenta) e sai do tratamento como uma mulher de vinte anos. O problema é que o tratamento é tão radical que afecta profundamente o equilibrio daqueles a que a ele se submetem. O súbito rejuvenescimento leva a que Mia deixe de se reconhecer, quase esquecendo quem é. Assim que tem oportunidade, Mia foge do conforto medicamente aprovado do seu apartamento e do seu mundo vigiado constantemente por pessoal de apoio médico, e vagueia pela Europa, em busca de... nem ela sabe bem o quê. As suas aventuras numa europa levam-na a encontrar um grupo de jovens intelectuais que se preparam para a imortalidade que já vislumbram no horizonte. Cheios de ideiais românticos como só os intelectuais europeus sabem ser, estes planeiam nunca perder o fogo sagrado - a chama da criatividade, a chama que distingue as pessoas ordinárias das pessoas extraordinárias.
A europa futura faria o sonho de qualquer europeísta convicto - harmonização fonética das línguas europeias, linhas de alta velocidade a cruzarem toda a europa, tornado possível o pequeno-almoço em Paris, trabalho em Estugarda, café em Munique e discussão de bar em Praga, com regresso assegurado no mesmo dia, e um governo constituido por uma multitude de organizações nacionais benevolentes. Todo o mundo é governado por uma tirania benevolente, que assegura cuidados médicos aos cidadãos, bem como um nível de vida confortável. Em qualquer cidade, há sempre comida - comida básica, mas comida - gratuita para quem quiser. Após um século de progresso tecnológico e duas pragas biológicas que devastaram o mundo, as entidades políticas não estão interessadas nas aleatoridades de um mercado livre, e criaram um mundo de economia controlada, uma sociedade próspera e benevolente. O maior risco socio-económico é o investimento em técnicas de extensão de vida de vanguarda - se resultarem, a recompensa financeira e em aumento da esperança de vida é fenomenal. Se não resultar, aqueles que correram este risco tornam-se acidentes biogenéticos, incapazes de reunir o capital para recorrerem a tratamentos de extensão de vida, e cometem o pior faux-pas desta sociedade apostada em viver eternamente: acabam por morrer.
Esta sociedade limpa e polida tem um lado obscuro. Se os velhos não morrem, se os velhos se rejuvenescem eternamente, que espaço há para os jovens? Através da Europa, Mia conhece legiões de jovens zangados com a vida que são obrigados a levar. As grandes oportunidades são-lhes negadas. Todos os lugares estão ocupados. A energia criativa da juventude manifesta-se em mercados de moda paralela e manifestações artísticas radicais. Mas pouco mais do que isso - aquilo que os jovens realmente almejam é um lugar no status-quo. Eles não planeiam morrer. Desejam desestabilizar a sociedade que eles apelidam de gerontocracia, mas intimamente sabem que o progresso nas tecnologias de extensão de vida lhes trará uma quase imortalidade.
Holy Fire é um livro recheado de ideias provocadoras. Valerá a pena, toda a nossa luta na direcção da pós-humanidade? Como é que a transcendência dos nossos limites biológicos nos alterará? Qual é o destino da criatividade e do instinto em sociedades altamente reguladas que buscam o conforto de forma benévola? O que é que realmente nos define como humanos? A morte, ou a nossa eterna busca para saciar a nossa curiosidade? Holy Fire é um livro de leitura um pouco desconexa, mas que a cada nova página nos sacode com uma nova ideia provocadora.
Como nota final, não deixa de ser paradoxal estar a combater uma das piores gripes com que me debati nos últimos tempos a ler sobre um futuro utópico onde a renovação celular é possível e normal, e tais coisas como a gripe já foram há muito erradicadas...