sábado, 4 de março de 2006

Canídeos

O que me surpreende quando entro no veterinário é como todas as donas de cães são similares. Estava lá eu, esta manhã, levado ao veterinário por uma urgência que pensava eu que se prendia com uma má mas deliciosa alimentação fornecida à fera indomável que todos conhecem como a minha doce cadela, e ia ouvindo as conversas que perpassavam pelo ambiente cheio de cheiros caninos da antecâmera das salas de consulta.

As similaridades são arrepiantes. Perante um determinado tipo de cão, aquele tipo de cão com focinho engrçado, pequenino e de preferência com muito pelo, aquele tipo de cão que agracia os anuncios televisivos e as páginas de publicidade das revistas, os gestos repetem-se. As vozes infantilizam-se, enquanto repetem ad nauseam "ai que cãozinho tão querido tão bonito tão pequerruchinho" enquanto os contemplam com trejeitos que deixam os animais aterrorizados de medo. Ponham-se no lugar dos animais, e tentem imaginar o que pensariam se vissem uma cara rechonchuda a aproximar-se perigosamente, com umas mãos gigantescas a quererem agarrar-vos a cabeça, enquanto murmura palavras ininteligíveis numa língua incompreensível. Eu, se fosse cão, mordia.

Ao meu lado estava o tipo de animal de que só os mais profundos amantes caninos gostam. Estamos a falar daqueles cãezinhos minúsculos, quase sem pelo, que cabem perfeitamente no bolso, ou no colo, entre o busto, de qualquer matrona adoradora de cachorrinhos. Enrolado num cobertorzinho azul, o animal ainda revelava laivos da sua natureza, enfim, animal. Recusava-se a ficar-se pelo cobertor, e tentava andar por todo o lado, muito a contragosto da dona que a intervalos regulares o aconchegava, forçando-o a enrolar-se no cobertor.
- Fica lá quietinho, fica aí, que tens friozinho - dizia, numa vos melífula. O animal tremia, não sei se de frio, se de medo. Aqueles aconchegos poderiam perfeitamente pulverizá-lo.

Não exagero se vos disser que o focinho do animal tinha o tamanho do meu dedo. Mindinho.

Outra das clientes do veterinário, uma mulher cinquentona bem nutrida que disfarçava a alvura dos cabelos com doses industriais de tinta alourada e as rugas da pele sob uma camada, digo, armadura, de cremes e maquilhagem, acaba por não resistir ao impulso maternal e vem afagar o minúsculo bichinho.
- Ai tão pequenino, tão bonito, ai o bébé, estás aí enroladinho nesse cobertorzinho, é? É?
Mira o pequeno cobertor azul e não resiste - Aposto que esse cobertor já era da tua dona quando ela era bébé!
- Pois é bem verdade - responde a camponesa que era a dona do minúsculo cão, chamado, num eufemismo atroz, de sansão - Era mesmo o meu cobertorzinho, e agora ainda lhe serve.

Tremi, de olhos esbugalhados, enquanto as mulheres se derretiam em expressões açucaradas.

Quanto à minha cadela, nada de grave. Apenas uma hérnia discal.